INTOLERÂNCIA >> MÁRIO BAGGIO
Tudo começou — a sanha discriminatória, que fique claro — com aquele anjo expulso do Paraíso e condenado a vagar pelo mundo como indigente por ter nascido com três asas, deformação que a todos horrorizava, tanto pelo ruído que produzia ao voar quanto pela aparência grotesca, infeliz. Era insuportável vê-lo planando.
A cruzada intolerante seguiu com a expulsão de outro anjo, portador de desfiguração física não menos detestável que a do primeiro: tinha uma asa só e, quando alçava voo, provocava vertigem e feria o equilíbrio de quem o olhasse, posto que voava de lado e dava a impressão de que a qualquer momento iria se chocar contra a torre da igreja ou contra uma montanha mais alta. Vê-lo em atividade era igualmente insuportável. O Paraíso podia prescindir de seres assim, não fariam falta nenhuma, ao contrário, o melhor era não tê-los por perto. Que tortura vê-los se atropelando no céu por causa de suas imperfeições! Que fossem expulsos esses dois e todos os parecidos com eles. O Paraíso não era lugar para gente assim.
A intolerância cresceu tanto que já não se falava de outra coisa. A sanha persecutória explodiu e ganhou ares de escândalo. O assunto só foi encerrado quando toda a espécie de anjos defeituosos foi finalmente banida de lá. O Paraíso ficou vazio de imperfeições.
Comentou-se nos botequins que todos eles, desde o nascimento, estavam condenados a desaparecer do céu por não combinarem com a perfeição do lugar:
uns, por serem simplesmente feios e disformes e causarem repugnância em todos que os olhavam;
outros, por se mostrarem completamente imbecis e faltos de discernimento sobre os assuntos que importavam à maioria;
outros ainda, por se meterem nas conversas acerca do mundo antes que o mundo fosse mundo;
e todos os demais, por serem monstruosamente humanos.
O falatório era encerrado invariavelmente com a frase: “Agora estamos livres da porcaria, talkey? O Paraíso está muito melhor sem essa gente defeituosa.”
Imagem: Pixabay.com
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