INTOLERÂNCIA >> MÁRIO BAGGIO


Tudo começou — a sanha discriminatória, que fique claro — com aquele anjo expulso do Paraíso e condenado a vagar pelo mundo como indigente por ter nascido com três asas, deformação que a todos horrorizava, tanto pelo ruído que produzia ao voar quanto pela aparência grotesca, infeliz. Era insuportável vê-lo planando. 

A cruzada intolerante seguiu com a expulsão de outro anjo, portador de desfiguração física não menos detestável que a do primeiro: tinha uma asa só e, quando alçava voo, provocava vertigem e feria o equilíbrio de quem o olhasse, posto que voava de lado e dava a impressão de que a qualquer momento iria se chocar contra a torre da igreja ou contra uma montanha mais alta. Vê-lo em atividade era igualmente insuportável. O Paraíso podia prescindir de seres assim, não fariam falta nenhuma, ao contrário, o melhor era não tê-los por perto. Que tortura vê-los se atropelando no céu por causa de suas imperfeições! Que fossem expulsos esses dois e todos os parecidos com eles. O Paraíso não era lugar para gente assim. 

A intolerância cresceu tanto que já não se falava de outra coisa. A sanha persecutória explodiu e ganhou ares de escândalo. O assunto só foi encerrado quando toda a espécie de anjos defeituosos foi finalmente banida de lá. O Paraíso ficou vazio de imperfeições. 

Comentou-se nos botequins que todos eles, desde o nascimento, estavam condenados a desaparecer do céu por não combinarem com a perfeição do lugar: 

uns, por serem simplesmente feios e disformes e causarem repugnância em todos que os olhavam;

outros, por se mostrarem completamente imbecis e faltos de discernimento sobre os assuntos que importavam à maioria; 

outros ainda, por se meterem nas conversas acerca do mundo antes que o mundo fosse mundo; 

e todos os demais, por serem monstruosamente humanos. 

O falatório era encerrado invariavelmente com a frase: “Agora estamos livres da porcaria, talkey? O Paraíso está muito melhor sem essa gente defeituosa.” 

 Imagem: Pixabay.com

Comentários

Jander Minesso disse…
“Um abraço hétero aí pros anjos que sobraram.”
Zoraya Cesar disse…
sse 'talkey' foi sintético e absoluto. Todo um texto explicado numa única palavra. Só um detalhe: aquele lugar excludente nunca foi o Paraíso. Era o inferno, e os condenados a serem enganados o tempo todo, merecidamente, como todo idiota.
Anônimo disse…
Ao ler, dei-me conta que talvez eu só tenha 1 asa. Amei.
Anônimo disse…
Esqueci de me anunciar : Soraya
Albir disse…
E se não adiantar, podemos mandá-los à câmara de gás, às valas, aos micro-ondas, aos Doi-codi, talkei?
Nadia Coldebella disse…
Nem o Paraíso nem a Terra são redondos. Também não são chatos como uma panqueca. São quadrados, cheio de cantos sujos. Um mundo bizarro.

Postagens mais visitadas