BLOQUEIO CRIATIVO >> JANDER MINESSO

 

Outro dia, comentei na terapia que estava passando por um momento de bloqueio criativo. A psicóloga sugeriu, então, que eu deixasse as ideias fluírem livres, escrevendo sem amarra alguma.

— Talvez saia algo interessante dessa associação livre. — disse ela.

Achei um conselho bobo, mas não descartei a possibilidade. Inclusive, já no caminho de volta, comentei sobre essa ideia com um dromedário que dividia a calçada comigo. Ele apenas deu um sorriso amarelo e apressou o passo. Na mesma hora, notei que o ônibus para Betelgeuse estava dobrando a esquina. Quero acreditar que meu amigo de corcova única não podia perder a condução.

Triste, mas resignado, resolvi nadar no pão de queijo que se estendia desde a esquina na qual me encontrava até minha casa, onde as pessoas na sala de jantar se ocupavam em nascer, morrer e assistir aquele filme onde um punhado de gente rica não consegue sair da já referida sala de jantar. Não encontrando o tal cômodo nos ermos do pão de queijo, achei melhor dançar um tango com o capeta e depois tomei uma ducha.

Qual não foi minha surpresa ao deixar isso para lá e descobrir que sim: lá embaixo tem um tiro liro liro. Fiquei perplexo, mas não tanto quanto meu banheiro, que daquele momento em diante converteu-se ao cristianismo ateu e abriu mão de quaisquer heranças deixadas por Gengis Khan aos seus descendentes. E olha que ele — o banheiro — não nasceu em berço esplêndido.

Sem saber ao certo como reagir à descrença climática da vanguarda reacionária, terminei de limpar a bunda e pus-me a soletrar o Tao Te Ching em posição fetal. Não consegui, mas segui tentando por cinco milênios, até que a garrafa térmica que trazia comigo desmoronou por cima dos oito minaretes alfandegários. Na mesma hora, alguém pichou um vice-verso nas paredes da bacia amazônica: “Imagens de marfim, melindres de cristal, cabeça do meu pau, que coisa feia.”

E não ficou por isso. Nenúfares, bilhões deles, postavam sem parar no Twitter (X), pedindo talheres mais veganos e verborrágicos para o Vaticano. Pouco se comentou sobre o assunto, mas é claro que a Bomba Tsar não gostou do que ouviu. Ninguém em sã consciência compraria casacos de linho meio século depois do ocaso do René. Aliás, tira esse pano daí e menciona o relógio derretido, para evitar confusão depois.

É por essas e outras que tudo leva pistache hoje em dia, num mundo onde as pessoas acham normal dar plantão mas se escandalizam com maçãs. “Macarena!” gritavam eles, todos enfileirados. E a torneira pingava e pingava e pingava a noite toda. Um prédio em Minsk não faria melhor.

Assim marchei muro adentro. Mas cansado dos influenciadores subatômicos, costurei um braço e liguei para a minha terapeuta:

– Alô?

– Não funcionou.

Imagem: Pixabay
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Comentários

Juliana Arapiraca disse…
Gosto de como decorre a história, embarquei e me diverti.
Cleber disse…
Acho que é por essas e outras também que temas de redação em provas de concurso não tem tema livre…
Nadia Coldebella disse…
Me liga. Vou te passar o número do psiquiatra e do manicômio. O elefante rosa com bolinhas verdes foi pra lá, junto com o dromedário teu amigo . Me mandou um recado e disse pra te chamar antes que acabe a pizza. Dia de balada, sabe como é.
Hermano disse…
"Pense fora da caixinha" - Disseram em 2014. / "Se coloque uma caixinha pra pensar." - Em 2024.
Eu mesmo nunca gostei de Pistache, Paleta Mexicana ou Smart Watch.
Ana Raja disse…
Eu conversaria com o dromedário todos os dias!
Anônimo disse…
Escrita automática é amada por surrealistas e magos. Gente que, diferente de escritores, precisam de certo tom difuso na mensagem. Para gerar ideias, é o que há. O problema começa na transformação em texto. Ótimo texto.
Anônimo disse…
Escrita automática é amada por surrealistas e magos. Gente que, diferente de escritores, precisam de certo tom difuso na mensagem. Para gerar ideias, é o que há. O problema começa na transformação em texto. Ótimo texto. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
"onde as pessoas na sala de jantar se ocupavam em nascer, morrer e assistir aquele filme onde um punhado de gente rica não consegue sair da já referida sala de jantar. " e nao só esse, mas praticamente todos os parágrafos com referências maravilhosas. Jander, de boas, vc escreve bem pra c@c&t&. Mas esse superou tudo.
Albir disse…
Kkkkkkkk, muito bom! Penso coisas parecidas, mas não tenho habilidade para registrá-las. Preciso treinar!

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