MEMÓRIAS DE UMA ASSOMBRAÇÃO PATÉTICA - Parte 01 >>> NÁDIA COLDEBELLA
É muito difícil morrer pelas mãos do grande amor. Confesso
que foi um choque. Achei que estava pagando o preço porque vendi minha alma, só
que descobri que essa história de vender a alma não funcionou direito comigo.
Vejam, eu ainda estou aqui. É verdade que sou alguém sem tanta consistência e
meio vaporizado, mas estou por aqui. Esperei passivamente por algum ser que me
levasse para a profundeza escura e desesperadora do tão temido inferno, mas
ninguém veio.
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Eu era jovem e rico, mas um homem sério, taciturno e
ensimesmado. Vivia uma vida pacata, sem grandes emoções. Isso era muito
conveniente para a minha posição. Eu gostava de viver assim, tinha tudo sob
controle. Eu impunha respeito.
- Prazer, Nicoletti. - Seus lábios formaram um coração
carnudo e vermelho ao som do próprio nome. Pronunciei o nome dela pela primeira
vez e ele estalou na minha boca, inebriando todo o meu paladar. Ela me olhou
languidamente e me rendeu. Eu estava totalmente entregue, completamente
subjugado.
Desprovida de qualquer compaixão, ela tomou conta dos meus
pensamentos e me transformou em alguém ridículo. Eu queria lamber o chão antes
que seus pés o tocassem, para que nenhuma pedra lhe causasse dor. Eu queria que
as pedras machucassem meus lábios e que sangue deles escorresse, para que ela
se compadecesse de mim. Ela me abraçaria e me beijaria, e o sangue dos meus
lábios seria o néctar que regaria nossa paixão. À noite, ela assombrava meus
sonhos tão despudoradamente que eu, ardendo em desejo, acordava deliciado e
constrangido. Eu me surpreendia e me envergonhava em ter estes pensamentos,
enojado dessas coisas que jamais imaginei. Mas todo meu autorrespeito logo se
esvaziava e eu me comprazia na minha obsessão.
Nicoletti, porém, sentia prazer em me humilhar. Ela pisava
na minha cabeça, esmagava meu coração e zombava do meu amor. Ela preferia os
olhares dos outros homens aos meus, seu prometido que lhe jurara amor eterno.
Eu poderia ter trilhado outro caminho. No entanto, escolhi
vender minha alma só para tê-la gemendo em meus braços.
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Eu era só dela. Ela era dona de todo o meu dinheiro e do meu
coração. Ela era para mim uma santa e eu, seu fiel devoto. Ela me entregou seu
corpo e gemeu em meus braços. E em outros braços também.
Ela fez de mim um corno, mas também um tirano. Rejeitado,
espezinhado, traído, não me contive e fiz de tudo para dominá-la. Minha alma já
estava perdida e agora eu não tinha nada a temer. Eu a queria sofrendo,
humilhada, vencida, ardendo, implorando, desvairada e embriagada de amor.
Iludido, achei que finalmente isso aconteceria naquela
noite, quando ela sussurrou meu nome, mordiscou o lóbulo da minha orelha,
mordeu meus lábios e me puxou para a cama. Derramou um vinho doce na minha boca
e disse, com voz rouca, que era só minha, que não havia outros.
- Ah, Nicoletti... – Chamei seu nome e ele borbulhava. Entrei
em êxtase, mas ela era Nicoletti, aquela que sentia prazer em me humilhar.
Enquanto eu a continha em mim, senti minha garganta queimar.
Fui tomado por uma espécie de confusão. O ar não chegava aos meus pulmões.
Enquanto meu mundo ruía, notei o brilho nos seus olhos ensandecidos. E enquanto
ela ria, meu mundo se desvanecia e eu entendi que ela me envenenara.
No final, restou apenas a imagem dela, um anjo desfigurado e
caído, de inocência demoníaca. E minhas lágrimas, que levaram consigo a
promessa de nunca mais deixá-la.
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E assim começou. Acordei morto. Ela sossegadamente passava
os dedos nos cabelos do meu cadáver. Ela passara a noite toda ao lado do meu
corpo e agora que amanhecera, preparava-se para encenar a dor pela morte do
doce marido, no caso eu.
Fiquei ali, aos pés da cama, em profunda comiseração. Foi na
morte que me dei conta do meu estado patético. Havia sido um humano patético,
agora eu era um morto patético.
Decidi que não poderia viver morto assim. Se não havia feito
nada da minha vida, eu precisava fazer alguma coisa da minha morte.
Ah, Nicoletti...
Continua...
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