OS ADORADORES DE GAIAMUND - 1a parte >> Zoraya Cesar
Eu olhava a mulher à minha frente - meus sentimentos ainda hoje divididos, mesmo decorridos anos (quantos? O tempo virara um borrão em minha mente).
Ela estava mais velha, claro. Estávamos, ambas. Mas, eu, do lado livre da parede de vidro, sentia-me bem mais acabada que ela.
(Lado livre da parede de vidro. Livre. Existe isso?)
A Sra. Côlson. À primeira vista, uma mulher pós meia idade desenxabida, magra, um pouco curvada. As mãos grossas e firmes de quem sabe o que faz e a pele seca de quem sempre trabalhou com os rudes e inclementes caprichos da natureza. Mas seus olhos, ah, seus olhos! Grandes e azuis, que, abaixo da penugem esbranquiçada de suas sobrancelhas e por trás das grossas lentes, brilhavam como o aço sob o sol.
(ou uma heroína? Uma celerada? Ainda hoje eu me pergunto. Ainda hoje eu me torturo).
- Humhum. Como vai, Srta. Nilx?
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Os Côlson. Eu os conhecia há bastante tempo. Como a quase totalidade da população rural do país, eram Adoradores de Gaiamund.
Uma religião antiga de se perder no tempo, fundada na pedra, na terra, nas raízes, nas forças da natureza. Diziam ter conexão com o mundo dos mortos e dos demônios. Usavam rituais próprios em uma língua falada pelos nossos ancestrais. Suas regras de conduta eram simples e severas: respeitar a todos e cuidar da natureza; não tentar converter ninguém; não trapacear; cumprir com sua missão de alimentar a humanidade e livrá-la dos demônios e seres do mal que tentavam destruí-la. Ultimamente, não sei por que, os Adoradores de Gaiamund estavam em estado de alerta, provocando tensão em toda a região.
Eu não cria em nada daquilo. Sou racional, só acredito em fatos.
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Meu trabalho é visitar as fazendas que recebiam crianças e adolescentes como aprendizes da lida, e ver se estava tudo bem.
Não estava.
Na última semana recebei inúmeras mensagens de Shaytan, a menina hospedada com os Côlson, dizendo que o casal era maluco e que ela precisava sair dali.
Aquilo foi um choque. Eles sempre foram hospedeiros e professores exemplares. Entrevistei todos os que passaram por lá e nunca ouvi queixas, só elogios. Eram severos, bondosos, carinhosos e pacientes.
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A estrada para a fazenda era pedregosa, o carro chacoalhava como uma coqueteleira nas mãos de um barman enfurecido.
O entorno, no entanto, era lindo. Os Côlson cuidavam da terra como os verdadeiros Adoradores de Gaiamund que eram.
Por isso achei que tinha perdido o caminho. Onde os campos de lavanda, os grandes canteiros de verduras, árvores frutíferas?
Tudo estava murcho, esturricado, amarronzado, pisoteado. Nada vicejava ali. A terra parecia ter sido torturada. Os longos cabos das lavandas, vergados sob o peso de algum medo inominável. Não via os cavalos nem as vacas. Parecia um cenário pós-apocalíptico.
Até a Floresta da Escuridão Eterna, sempre exuberante, sempre cheirando a húmus, verde e vida, estava esquisita, envolta em uma nuvem cinza e fria. Como se algo perigoso e mortal estivesse escondido em suas fímbrias, prestes a atacar.
Frio! Naquela época do ano a temperatura era cálida e amistosa. Inexplicável, portanto, que caísse tão rapidamente, ao ponto de, mesmo dentro do carro, sentir meu corpo enrijecer. Outra coisa extraordinária era a tarde, que, nem sei como explicar racionalmente, dava lugar à noite, bem antes da hora.
Toda a natureza parecia agourenta e mal-intencionada.
De repente, eu quis muito chegar logo.
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De tudo o que aconteceu, lembro com nitidez do frio desgracento, da noite que caía rapidamente, como se o entardecer estivesse fugindo. E do vento, que sussurrava algo gelado no meu ouvido. O que ele dizia, não sei, não quis ouvir. Não sou dessas coisas.
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Desci do carro, correndo, para não congelar.
Ao pisar nos degraus do alpendre, quase caí. Em vez de rangerem sob meu peso, eles afundaram! Comose feitos de espuma. Não sou boa em física, mas sei que escadas feitas com a sólida madeira da Floresta Betiko Iluntasuna, a Floresta da Escuridão Eterna, simplesmente não amoleciam.
Bati à porta. Um silêncio pesado me respondeu. Afastei-me um pouco, olhei em volta. Tudo escuro. O celeiro, também apagado. Será que tinham todos saído? Mas eu avisei que iria. Olhei a garagem. O carro dos Côlson estava lá.
Terra, folhas, gravetos, insetos. Tufos de ervas daninhas, as bolas de mato. Tudo rolava, voava, plainava por todos os lados, levado pelo vento, que insistia em ulular em meus ouvidos. Mas eu continuava a não entender.
Bati de novo, mais forte, assim como o vento e suas vozes. Estava cansada, enregelada, faminta. Um leve medo começou a se instalar no fundo da minha consciência. E foi nesse momento que percebi, finalmente, o que o vento estava me dizendo.
Ele não estava dizendo nada.
Estava, isso sim, trazendo o uivo dos lobos, cada vez mais perto. Perto o suficiente, agora, para eu vê-los, uma matilha de pelo menos dez, grandes lobos cinzentos, marrons, negros aproximando-se numa cadência crescente. Em pouco tempo me alcançariam. E aí tudo estaria acabado. Ninguém escapa dos Grandes Lobos Cathwulf.
Esmurrei a porta, berrando enlouquecidamente. Não dava tempo de voltar para o carro, eu estava perdida, morta e devorada sem apelação, nem meus ossos seriam deixados para trás. Podia ouvir seu resfolegar, sentir o cheiro de seus pelos úmidos.
A porta abriu.
Entrei chorando, os dentes se entrechocando de pavor e frio, e me tranquei lá dentro. Olhei pela janela,
escondida atrás da cortina.
escondida atrás da cortina.
Não havia sinal de lobos. Só as nuvens cinza acobertando a floresta, e as coisas levadas pelo vento. Como assim? Sentia-me enjoada e tonta. Eles estavam mais perto de mim que da floresta. E eu sabia que Grandes Lobos Cathwulf não desistem tão fácil, teriam ficado a rondar a porta, testar sua força, circular a casa, procurando um ponto fraco.
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Eram muitos os mistérios. A súbita mudança de temperatura. A noite caindo antes da hora. A casa vazia, mas o carro na garagem. A porta abrindo sozinha. O desaparecimento dos lobos. Havia de ter uma explicação lógica. Era questão de me acalmar.
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Estava mais frio que do lado de fora, o que não fazia sentido, considerando-se que havia uma lareira acesa. Tateei a parede ao lado da porta, procurando o interruptor. Precisava de luz para percorrer a casa em busca das pessoas, de sinais, de um telefone fixo, pelamor de Cernunuin!
Acendi a luz. Em vez de iluminar, a lâmpada soturnou o ambiente de tal maneira que fez doer meu coração. Sombras bruxuleavam ao dançar das chamas, formando grotescos desenhos nas paredes - garras, animais decapitados, forcas. Apaguei a luz.
Os lobos uivaram novamente, tão perto, tão forte, que pareciam estar ao meu lado. Recomecei a chorar, e, tremendo tanto que mal conseguia andar, cheguei-me à janela.
Tudo deserto.
Os uivos, certamente, pensei, eram do vento passando por alguma fresta. Certamente.
Tentei me aquecer um pouco, mas, quanto mais me aproximava da lareira, mais frio sentia. Um fogo morto. Não aquecia, mal iluminava, não crepitava. Meus pelos se arrepiaram, não sei se de frio ou outra coisa. Mas eu não acredito em ‘outras coisas’.
Tudo, de repente, era silêncio. Fogo, vento, lobos, minha respiração entrecortada. Não sei quanto tempo isso durou. Até que meus dentes voltaram a bater, fazendo um eco lúgubre, que me envolveu como o abraço de um defunto.
Foi então que, por cima do clap-clap dos meus dentes, ouvi ruídos indefinidos no andar de cima. Uma mistura gutural de xingamentos, exortações, gemidos, risadas diabólicas, grunhidos, não sei, não sei.
(Até hoje, se tento me lembrar e dissecar os sons, sinto dores de cabeça excruciantes e fico febril. Muitas lembranças daquela noite me fazem ficar febril, em desvario, às vezes desmaio. Pior são os pesadelos.)
Eu podia estar apavorada, faminta, congelando, mas era, digo, sou, uma pessoa racional, e covarde nunca fui.
As escadas estavam parcamente iluminadas pela claraboia, que deixava passar uma estranha e inexplicável luz avermelhada. Agarrei um atiçador da lareira e subi lentamente. Fosse o que fosse, eu precisava saber o que estava acontecendo e, quem sabe, impedir algum crime.
Arrastei-me escada acima, sentindo meu corpo pesado como a consciência dos traidores. A parede – vocês podem não acreditar, nem eu mesma sei se acredito – estava suando. Suando e gemendo. Todo meu ser gritava por sair dali correndo, desabalada, que os lobos me comessem, precisava terminar logo aquilo. Senti que ia enlouquecer.
Cheguei ao final da escada.
Não sei bem o que esperava encontrar.
Só não esperava aquilo.
Nem a poça de sangue que se derramava lentamente em minha direção.
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Continua dia 13 de setembro a 2ª e última parte da história.
Comentários
As preliminares foram bem sinistras!
Só vou conseguir dormir depois da segunda parte, na melhor das hipóteses...
Queria não descobrir o que é Gaiamund!