ELA DANÇA EM MEUS SONHOS - 3ª e última parte >> Zoraya Cesar


Terpsícore foi meu grande amor quando jovem: eu, ainda detetive de sarjeta; ela, dançarina de boates baratas. Durante quase duas décadas nunca soubemos um do outro. Então ela apareceu, pedindo minha ajuda. Pedindo para que eu lhe matasse o marido.
Embora tenha minha cota de cadáveres, não sou assassino. Mas não podia deixá-la sem socorro. Aliás, nunca deixei uma dama na mão. Em nenhum sentido. 

Disse-me que roubara uma prova incriminatória das atividades ilícitas dele, e chantageou-o por dinheiro, para fugir. Mas ele a ameaçara de morte. Temendo por sua vida, Terps queria que eu o matasse. Simples. Como tudo na minha vida que envolve mulheres.

Passei a me dedicar ao caso de Terps. E à própria Terps. 

Transávamos o tempo quase todo. No meio da noite ela me acordava e dançava para mim, como antigamente. E transávamos de novo. Digo, damas e cavalheiros, o corpo de Terps, que sempre fora de outro mundo, agora, mais maduro, estava no ponto de estourar na boca. Eu a mastigava e virava do avesso como um desesperado. Acho que tentava despertar algo que não existia mais. Porque algo ali estava errado, muito errado, e meu amor, ou a lembrança desse amor, estava solapando o cinismo e a frieza que sempre me acudiram. Eu só tinha olhos, mãos, boca, pau, pensamentos, para Terps. Precisava dela na minha pele. Precisava salvar a pele dela. 

Uma noite, porém, depois de uma exaustiva sessão de sexo, bebida e Terps, sonhei com meu mentor, o falecido Victor*. Como sempre, vestido com o apuro e a elegância de um homem das antigas, olhava para mim com aquela expressão paternal e ao mesmo tempo ameaçadora de quem vai descer a porrada se o moleque não tomar jeito. Apontou para meu coração, e ouvi sua voz, tão real como se estivesse a meu lado: “garoto, confie nos seus instintos e use a cabeça. Lembre-se do que ensinei”. 

Não sou dado a crendices ou superstições, nem sou impressionável. Mas já vi muita coisa nessa vida e sei que há outra. 

Acordei. Abraçava Terps, sua bunda uma almofada sedosa aquecendo meu corpo. Segurava um de seus seios em minha mão. Segurei também a tentação de enfiá-lo na boca e me acabar nele até que inchasse. Lentamente, para não a despertar, soltei aquela tentação do Hades e virei de barriga para cima. Terpsícore ressonava como um gatinho a meu lado.

Deixei minha consciência flutuar nos jogos de luz e sombra que os faróis dos carros faziam no teto do quarto escuro. Entrei numa espécie de transe, lembrando do abismo em que quase caíra por amor e devassidão quando era jovem e tolo.  

E, de repente, deixei de ver as coisas sob a ótica do passado. Entendi o que percebera de errado desde o início. Terpsícore estava não só mentindo para mim, como armando alguma coisa perigosa, que eu desconfiava o que podia ser. Ninguém passa tanto tempo na minha profissão sem aprender o básico: conhecer o ser humano e entender as engrenagens de seu pensamento. Restava saber até que ponto iam os planos de Terps. 

A missão era bem mais difícil do que pensara: tinha de salvá-la dela mesma. 

 

O tal marido não passava de um paspalho. Sua concessionária servia como fachada para tráfico e lavagem de dinheiro, mas ele não era um bandido por formação. Era um otário, que lucrava pouco, mas se arriscava muito. Iria se ferrar como uma barata debaixo do sapato quando fosse descoberto. E seria.

Mas eu tinha de negociar uma saída para Terps. Avisei-a que iria ao encontro dele  e saí ao anoitecer em direção ao escritório do fulaninho, conversar. Sabia que só ele estaria lá, com seu guarda-costas inútil. 

Tentei entrar civilizadamente, mas o segurança me barrou sem ao menos um boa noite. Um brutamontes, sem refinamento algum.  Uma descarga elétrica, dois socos na cara, e um joelho arrebentado lhe ensinaram boas maneiras, no entanto. Joguei-o dentro de um armário. (Não estranhem o uso do taser. O resultado de uma luta é sempre uma incógnita. E nós, profissionais experientes, não nos arriscamos à toa).

O maridinho de Terps gritava como bezerro desmamado. Dei-lhe dois tapões na boca, segurei-o pelas lapelas e sacudi-o até seus olhos quase saírem das órbitas. Por pouco me arrependi de ter sido tão duro. Parecia um franguinho assustado. E apaixonado. 

De sua boca trêmula e mole saiu tudo num supetão. E confirmou minhas suspeitas. Jamais ameaçara Terps. Ela sim, roubara um pacote de drogas que ele guardara para o bandido e agora exigia dinheiro para devolver. O sujeitinho apontou para uma mala cheia de notas altas na mesa. 

- É para ela! Eles estão vindo hoje e vão me matar se eu não der a droga. 

O panaca tremia e chorava como um bebê de fraldas molhadas. Estava desesperado. E se ela quisesse voltar, ele também aceitaria. Quem teria coragem de dispensar Terpsícore? 

E então, mais uma peça, como eu bem sabia que aconteceria, se encaixou. Se encaixou tão bem quanto Terps nos meus quadris. E daqui por diante tudo aconteceu tão rápido que, tenho certeza, por muitos anos ainda terei dúvidas sobre os detalhes.

Terpsícore entrou, ela e seu perfume inebriante, ela e sua sedução transbordante, exatamente como entrara no bar e me pedira para matar o marido violento que ameaçara matá-la. A blusa branca ressaltava sua pele morena e seus peitos sem sutiã. O marido enganado olhava embasbacado. Creio que ele nunca entendeu como casara com aquele mulherão. Pior, tenho certeza que ele não sabia com que tipo de mulherão havia casado. Eu sabia. Já quase me afogara naquelas águas quando jovem.

- Princesa, você veio... minha querida... eu te amo, eu... 

O olhar gélido de Terpsícore esfriou seu romantismo. Tive vontade de bater nele de novo. Idiota. Ainda não entendera.  

- Não vim devolver nada queridinho. 

Fiquei quieto. Em briga de marido e mulher não se mete o revólver. Que, aliás, ela segurava bastante
firmemente nas mãos, apontando para nós. 

- Ma... maaas, Ttteerp... como? Por quê? Princesa, não, eles vão me matar, eu...

Ela riu na cara do marido. Que não era violento, apenas um remelento apaixonado e burro. Não o culpava muito. Impossível não cair sob os encantos de Terpsícore. 

- Só vim ver se meu antigo amante te mataria mesmo. Se você morrer num assalto recebo todo o dinheiro do seguro. Ficaria também com esse dinheiro aí – e apontou a mala – e depois negociaria a entrega das drogas por mais dinheiro.

Ela esperou para ter certeza de que suas palavras nos queimara o peito e arrebentara nosso coração. 
 
Olhou para mim.

- Foi bom, não foi? Essa volta ao passado. Você continua gostoso, mas ficou frouxo. Até pensei em fugirmos juntos depois que você matasse esse imbecil aí. Já que você amarelou, vou deixar que os traficantes matem vocês dois. Já me poupa um trabalho. Lamento, querido, mas, como você mesmo me ensinou, “não deixe pontas soltas”.  

Eu nada falei. Calculava minhas possibilidades. Só queria sair vivo dali e sem bandidos ao meu encalço. Contava mentalmente os minutos.

- Hora de ir. Não sei para onde vocês vão, eu certamente vou para o paraíso. Um paraíso caribenho. 

Sorria. Usara a mim e ao marido e se descartaria de nós como quem se livra de uma pereba.
  
- Terps – falei – não faça isso. Essa gente é mais perigosa que aqueles que conhecemos quando jovens. Eles não negociam. Matam e pegam o que querem. 

Ela me olhou com desprezo. Pensou que eu estava advogando em causa própria, por covardia. 

Mandou que ficássemos no canto da sala e disse que se a seguíssemos ela atiraria. Os capangas estavam chegando e, ao não encontrarem a droga, nos matariam. Senti o salto fino e penetrante dos sapatos dela entrando em meu peito. Doeu.

Não me meto com armas apontadas para mim. Obedeci e fiz o lacrimoso obedecer também. Ela saiu.  

Descrevendo assim, parece que muito tempo se passou. Mas tudo foi rápido como dois piscares de olhos. E então a terceira parte do jogo começou. 

Ouvimos o barulho de carros se aproximando, cantando pneus, alguém chutando a porta. 

Eu é que não ia ficar ali. 

O sujeitinho me agarrou como um afogado, me besuntando de lágrimas. Não sou salva-vidas de corno que se associa com traficantes. Um velhaco. Que pagasse. Sua hora chegara. A polícia ou os traficantes dariam um jeito nele. Provas não faltavam. E eu tinha de salvar Terps. Afastei-o com brutalidade, derrubando-o qual boneca de trapo e corri como se calçado com as sandálias de Hermes. Tinha de impedir Terps de destruir ainda mais a própria vida. 

E por que ajudá-la depois de sua perfídia? Porque o passado deixa suas marcas.  Entendi o ponto de vista dela. Estava envelhecendo, em breve perderia seus encantos e seu poder sobre os homens. O casamento fora um fracasso. Sua vida também. Não seria eu a julgá-la. 

Mas também não seria eu a morrer por causa dela. 

Quando cheguei no térreo, o cenário estava pronto para o último ato. 
 
O prédio estava cercado por policiais. A polícia que eu chamei. E chamei porque detesto bandido. E porque preciso ficar sempre bem com a moçada de uniforme. No meu trabalho muitas vezes dependemos da boa vontade deles. E porque não sou super-herói. 

Ela estava dentro do carro. Me viu. Fiz sinal para se abaixar e ficar quieta. A polícia a flagraria com a droga, mas um bom advogado sempre pode alegar ignorância, ou armação do marido, enfim, o que não pode um bom advogado? 

Terps sempre fora fria e calculista, como comprovam os acontecimentos recentes. Mas ligou o carro e embicou para o portão. Deve ter perdido o controle de seus nervos. Afinal, a saída estava tão perto, seus planos estavam quase dando certo, só faltava um mísero detalhe, sair dali com vida, deixando dois mortos para trás.

O som do motor quebrou a tensão do silêncio sepulcral entre mocinhos e bandidos e o tiroteio começou. 

Escondi-me nas sombras e fiquei quieto como um túmulo. 

A contenda foi breve. Os bandidos que restaram se entregaram. Não iam morrer por causa de um chefe que nem pagava férias. Dois policiais feridos, um morto. Lamentei. Já tem poucos dos bons entre nós. Menos um faz falta. 


Saí à procura de Terps. Estaria bem? Teria conseguido fugir na confusão? Eu a entregaria à polícia? 

Vãs cogitações. 

Terps fugira. Com Caronte, pelo Estige.

Um tiro tingira sua imaculada blusa branca de vermelho morte. Ela segurava firmemente a mala de dinheiro e o pacote com a droga como se a vida dela dependesse daquilo. Não dependia, Terps, não dependia.

Depois de passar um dia inteiro me afogando em Bourbon, sem dormir e sem comer, resolvi tomar jeito antes que fosse tarde demais. Corri cinco quilômetros e nadei outros tantos. Cheguei exausto e limpo de qualquer álcool ou desgosto. 

A vida voltara ao normal.

Pois as coisas são como são. Todos pagamos um preço por nossas escolhas. Não há escapatória dessa lei a não ser a morte. Por enquanto, estou vivo. E, às vezes, quando menos espero, Terps vem dançar em meus sonhos. 

Outras aventuras do Detetive sem nome
* a história de Victor, o mentor de nosso herói está em Resgate do passado, abaixo

Noite noir  - a vingança é um prato que se come escondido numa noite de fog

O profissional - para sobreviver, é preciso não levar para o lado pessoal 

Já vi esse filme - a vantagem de conhecer uma história é poder mudar o seu final

Sorte no jogo, nem tanto no amor - 1a parte - e é bom ter consciência disso, para poder jogar mais uma rodada

Sorte no jogo, nem tanto no amor, 2a parte - você teve a chance de uma segunda rodada. Não desperdice

Resgate do passado - 1a parte - primeiro vem o passado te assombrar

Regate do passado - 2a parte - o passado tem a forma de um mentor e de sua mulher irresistível

Resgate do passado - 3a parte - mas o dever de lealdade e honra está acima de tudo

Ela dança em meus sonhos - 1a parte - você pode até tentar ficar quieto, mas o carrossel da vida, de uma hora para outra, começa a girar

Ela dança em meus sonhos - 2ª parte - a história de amor entre Terpsícore e o profissional sem nome e o estranho pedido que ela fez.

Ela dança em meus sonhos - 3ª parte - o carrossel da vida gira violentamente, mas se você nao se deixa enganar pelo passado, consegue sair inteiro, mesmo que não incólume. 

Comentários

Anônimo disse…
Mais uma mulher fatal que foi para o saco!E o corno, sobreviveu?
branco disse…
como eu havia imaginado.
a hora da ação e que ação!
muito melhor do que eu imaginei!
Marcio disse…
"Não há escapatória dessa lei a não ser a morte."

O detetive sem nome conhece os seus parentes que frequentam as histórias do Lucrécio Lucas?

Whisner Fraga disse…
Um detetive divertido e irônico.
Jander disse…
Gosto muito de Dylan Dog. E tem coisas nesse detetive sem nome que me lembram o detetive do pesadelo. Bela trilogia.
André Ferrer disse…
Eu deveria ler a sua história e imaginar o Sem Nome com o carão do Humphrey Bogart, mas ele, definitivamente, tem a forma do Tom Selleck. Cada geração tem o detetive que merece. Gosto dessa tradição literária e gosto de quando os elementos da tradição figuram na história e não atrapalham as inovações. Zoraya, você tem colocado elementos assim nas suas histórias sem distorcer as bases do noir clássico e, o mais importante, sem desfigurar a estrutura fundamental do conto moderno inaugurado por Poe. A gente deve muito aos magos do passado.
Nadia Coldebella disse…
Zô querida!
Esse é um roteiro de filme! Tem paixão, cobiça, suspense...
A imagem do sangue vermelho -morte manchando a blusa branca é cinematográfica!
Vc nunca decepciona. Não sei como o Tarantino ainda não te recrutou!
Grande beijo 😘😘
Zoraya Cesar disse…
Anônimo - só vc se preocupou com o corno! hahaha. Bem, não sei se ele sobreviveu àquela noite, mas certamente se ferrou, pode ter certeza disso. As provas de que ele era um laranja a serviço de traficantes eram sobejas e irrefutáveis. Mesmo testemunhando para conseguir redução da pena, veja, a vida dele do lado de fora ou dentro da cadeia virou uma improbabilidade

branco - vc naõ sabe como me senti aliviada. sabia q vc esperava ação e tava receosa de decepcioná-lo!

Márcio - eles nao se conhecem, vivem em mundos bem diferentes. Mas ele mesmo disse que já 'viu muita coisa nessa vida e sabe que há outra". Então, suponho que, pela experiência dele, mesmo na outra vida não há muita escapatória: nossas escolhas nos acompanham. Não há céu e inferno, e nõs nao vamos para um ou outro dependendo do q fizemos de nossa vida?

Whisner - obrigada! Ele mandou dizer q vc foi um cavalheiro, pois ele sabe muito bem que o que ele é mesmo é cínico kkkkk.

Jander - Dylan Dog é um luxo! Sentimo-nos, eu e meu amigo sem nome, lisonjeados! E que bom q vc gostou dos 3 episódios. Grata mesmo.

André Ferrer - dentre todos os comentários e elogios mais que generosíssimos que colegas e amigos me dão, esse foi um para eu guardar no coração. Muito, muito obrigada. Humphrey Bogard ou Tom Selleck! Sim. Amo romance noir e devo muito, aliás, qq coisa de noir que eu escreva, devo graças genuflexas a Raymond Chandler, Dashiel Hemmet, James Ellroy, Ross MacDonald, e Mickey Spillane. E vc citar Poe foi demais pra mim.

Nádia - amiga, muitoo obrigada! De alguma forma naõ me surpreende vc ter gostado dessa imagem. Pega a pá que vou ligando o carro...
Albir disse…
"Embora tenha minha cota de cadáveres, não sou assassino."

Zoraya também não! É só escritora. Os cadáveres são efeitos colaterais.
Érica disse…
"E eu tinha de salvar Terps." Depois de tudo a pessoa continuou pensando com a cabeça errada... Ai, ai...
Boa a reviravolta, mas desde o começo desconfiava que a dançarina ia sapatear em cima do Sem Nome, só não imaginava que seria um tango tão trágico rs
sergio geia disse…
Você tem essa capacidade: depois de um certo tempo de leitura, a gente não larga mais e não vê a hora de encontrar o final. Show!
Zoraya Cesar disse…
Albir - Dom Albir, como sempre, seus comentários elogiosos me fazem rir. Agora, a sinceridade e a modéstia me impelem a comentar: quem disse que os cadáveres são efeitos colaterarais e não primários...?

Érica - pois é. Mas a explicação é simples, ele não podia deixar o amor dele se ferrar sem tentar ajudar. Ele estendeu a mão, ela não quis pegar e ele saiu fora. Gostei da imagem do 'tango trágico". Gostei mesmo.

Sérgio - vc escreve coisas tão gentis q tenho medo q vc fique assustado com minhas histórias (que nao são minhas. Ou são, D. Albir? heeheh), então, vc gostar, se prender e ir até o final é um baita elogio pra mim.

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