APENAS UM DESABAFO >> Clara Braga
Um professor, entendendo seu papel em sala de aula, se sentiu na obrigação de explicar naquele momento que Noé e a arca são um mito. Não demorou para que um se ofendesse e ficasse emburrado no canto, achando ruim o fato do professor estar desrespeitando a religião dele.
Em outro momento, um pai contacta a instituição e afirma: "Caso algum outro professor diga que as feições de Jesus eram mais parecidas com as de um muçulmano do que com esses traços europeus que estamos acostumados a ver, vou processar a instituição! Vocês não têm direito de desrespeitar a minha religião!"
Durante uma festa das regiões, vários grupos se apresentaram dançando músicas e ritmos típicos de cada região. Dançar funk jamais seria um problema, mas "é sério que vocês querem colocar essas crianças dançando maracatu? Elas não merecem ter suas religiões desrespeitadas!"
Em uma loja colaborativa de Brasília, os vendedores estão com medo de serem apedrejados. A todo momento, passa alguém na porta xingando e ameaçando a loja, já que uma das artistas expositoras cria imagens de santos em gesso, mas os representa vestidos de personagens como Chapolin, Batman, Frida Kahlo e outros. Um movimento já começou e as pessoas estão se mobilizando, vão processar a loja, afinal a loja não têm direito de desrespeitar a religião deles.
Em uma rede social, os perfis de três fotógrafos brasilienses foram desativados, afinal eles trabalham com a temática ofensiva do nu artístico. Quem não entende a diferença entre a imagem desses artistas e a incitação ao erotismo ou algo do tipo, se ofende mesmo, mas de quem é a culpa?
No Brasil, pessoas morrem por terem crenças diferentes. Elas não têm o direito de acreditarem naquilo que acreditam, a crença em algo diferente do que é considerado correto por uma maioria é uma ofensa.
Não gosto de falar sobre polêmicas, corro de discussões políticas e, principalmente, religiosas, mas peço licença para o desabafo, até porque em meio a essas histórias cheias de ofensas e desrespeitos, acabei me ofendendo também. Não consigo aceitar que estamos nos movimentando em busca de uma sociedade na qual existem duas opiniões: a minha certa e a sua errada. E como é lógico que eu estou certa, nada mais justo do que eu me sentir no direito de fazer justiça com minhas próprias mãos!
Me preocupa seriamente saber que enquanto tivermos pais que ameaçam, avós e avôs que apedrejam, teremos meninos emburrados no canto da sala que podem se tornar o próximo a matar uma jovem que está saindo de um centro religioso, afinal é ela e, com certeza, sou eu com a minha religiosidade pouco desenvolvida que estávamos entendendo tudo errado: a lição não é o amor ao próximo, a lição nunca foi a tolerância, a mensagem nunca foi de caridade, a mensagem é clara: se não estão do nosso lado, estão contra a gente, e ninguém tem o direito de nos desrespeitar!
Imagino Jesus, com feições europeias, claro, assistindo a tudo isso lá de cima...
Essa crônica faz parte do projeto Crônicas de Um Ontem e foi originalmente publicada no dia 23 de fevereiro de 2016.
Comentários
Vc tem uma excelente veia crítica! Tô gostando muito destes seus textos pontiagudos com gotinhas de fel.
Um gde abraço