SEXTO MONTE DE LESTE PARA OESTE >> JANDER MINESSO

 

Montevidéu é a melhor capital onde nada acontece do mundo. As pessoas andam pelas ruas como se cada uma delas já estivesse ocupada e satisfeita o bastante com a própria vida, pouco se importando com as manias dos outros. Quer fumar maconha até sair fumaça pelo rabo? Fume. Quer pegar alguém do mesmo sexo? Seja feliz. Quer ser um bom cristão, temente a Deus? Amém. A cidade permite tudo isso. E ainda assim, cada um ali parece entender que a própria liberdade acaba onde começa a do outro. Os montevideanos (belo gentílico, aliás) parecem ter o senso inato de que jogam no mesmo time. Exceto, claro, em dias de Peñarol e Nacional. Aí, não tem coletividade que sobreviva. Mas tirando isso, Montevidéu é a essência do faz o que queres pois é tudo da Lei.

A origem do nome da cidade também é espetacular e diz muito sobre o seu povo. Séculos atrás, quando os imigrantes espanhóis se aproximavam do Rio da Prata via Atlântico, tinham uma dificuldade terrível em encontrar o assentamento que mais tarde tornar-se-ia esta simpática capital sul-americana. E para facilitar a vida, criaram uma dica que sempre era repetida àqueles que seguiam para lá: “procure o sexto monte de leste para oeste.” Ou, de um jeito mais sintético: Monte VI (seis em algarismos romanos) de E(ste) a O(este). Monte-VI-de-E-O. Legal, né? O uruguaio, esta criatura tão sofisticada quanto prosaica, já estava destinado ao pragmatismo desde a origem. Ou isso, ou eu o guia turístico me enganou. E se for este o caso, tudo bem. Entre a verdade e uma boa história, todo mundo sabe qual opção escolher.

Outra coisa fantástica do lugar é que os fins de tarde de Montevidéu têm cheiro de lenha queimada, pelo menos no inverno. E o mais legal é que você não consegue dizer ao certo de onde o cheiro vem. A gente só sente ele ali, em cada rua larga e vazia, escapando das paredes já meio descascadas das casas geminadas, descendo do céu, misturado com a brisa fria num contraste simples e confortável. Mas falando em brisa, não se iluda: o soprinho fresco que corre pelas ruas dos bairros é só uma amostra grátis do vendaval que rasga a rambla às margens do rio e trinca a alma da gente de tão gelado. E olha que eu já amei o inverno. Mas depois da minha experiência rioplatense, nossa relação esfriou um pouco.

Claro que nem tudo são flores no extremo sul do Uruguai. Como toda grande cidade (ainda que grande seja um exagero aqui), o sexto monte de leste para oeste também sofre com sua dose de miséria, violência e outros danos colaterais e evitáveis do progresso. Mas como a grama do vizinho sempre parece mais verde, dá a impressão de que lá estes problemas são um pouco menos terríveis do que aqui. Aliás, não sei qual é o segredo, mas achei mesmo a grama deles mais verde. Deve ser a legalização.

O curioso é que, quando tento colocar no papel o que aquele pedacinho de chão na beira do rio tem de especial, me sinto quase idiota por gostar tanto de um lugar que não tem nenhuma magia ou horror evidentes. Montevidéu não é Roma, onde você dobra uma esquina e de repente dá de cara com um muro que tem milhares de anos. E também não é Miami, aquela Barra da Tijuca hipertrofiada onde tudo é doze vezes maior do que precisava ser e onde você é livre para fazer o que quiser, desde que só queira fazer compras. Montevidéu é uma capital na América do Sul onde as casas e apartamentos não têm grades (ainda que isso possa ser uma impressão míope, já que o Turismo tem uma mão muito delicada quando empurra nossa cabeça para a direção que ele quer). A língua é próxima o bastante para não assustar, mas diferente o suficiente para prender nossa atenção com a sua própria música. Aliás, é uma pena que os uruguaios não sejam muito de usar palavrões. Xingar em espanhol é a mais bela forma de expressão humana.

O Brasil e o mundo estão cheios de lugares maravilhosos e repletos de ação, mas Montevidéu ainda é um dos meus solos sagrados. É a cidade que me entende, que me reflete. Ela é quieta, lenta e contraditória: gelada e quente ao mesmo tempo, bonita e feia ao mesmo tempo. Não que eu me ache feio: com um bom banho e a minha jaqueta preferida, fico bastante apresentável. E o sexto monte de leste para oeste também. Montevidéu é linda se você concordar em viver no tempo dela. Não tem nada de cair o queixo, mas tem todo tipo de coisinhas que aquecem o peito. Por exemplo: quando você anda pelo Boulevard España em Pocitos, o sol se põe na ponta oposta ao Rio da Prata. Então, quando você olha na direção do rio, já anoiteceu. Mas se você virar na direção da cidade, ainda é tarde. Uma bobeira, eu sei, mas gosto dos espetáculos bestas do cotidiano. São os meus ikigai. E isso, a cidade oferece aos montes.

Este texto é a prova de que tentei. Mas quanto mais escrevo, mais me sinto destruindo tudo aquilo que a capital uruguaia tem de lindo e intraduzível. Então, melhor parar por aqui. De qualquer maneira, se alguma agência de viagens se interessar em comprar meus serviços de redação turística, vem de inbox. Só não me mandem para Miami.

Comentários

Anônimo disse…
Muito bom seu texto e realmente deu vontade conhecer o lugar. Alguma agência de viagem já pode contratar.
Zoraya Cesar disse…
Jander, que texto maravilhoso, cheio de ironias sutis (Miami vc é livre pra fazer o q quer, desde q seja compras hahahaha, entre outras) e belezas mínimas. Sua descrição me desceu como caramelo quentinho e doce, com um toque de especiarias. Me lembrou uma cena de Sob o sol da Toscana, em que um idiota pede à personagem para escrever um cartão postal pra mãe dele pq ela, a protagonista, era escritora, e ele, um preguiçoso. Ela começa a descrever com os olhos do coração, que nem você, falando sobre os sinos que batem ao longe, o cheiro das flores ao longo do caminho... e o sujeitinho nao gosta hahaha. MUITO linda e aconchegante sua descrição, amei. Pronto. Agora tenho de conhecer Monte VI.
Ana Raja disse…
Jander,adoro os seus textos. A gente fica preso do começo ao fim. E como é bom saber apreciar os espetáculos bestas do cotidiano...esse dom é para poucos.
Nadia Coldebella disse…
Eu já morei relativamente perto e não tive a honra. Mas imaginar que perto do Rio posso observar a transição do tempo, me causa um certo arrependimento por não ter aproveitado a oportunidade quando eu tive.

Agora, concordo com os colegas. Vc escreve muito bem. Gostei do ritmo e do encadeamento das palavras. Gostei das descrições bem visuais e ao mesmo tempo emocionais. Teu texto tem um colorido muito bacana e se a gente se deixa levar, parece uma daquelas músicas gostosas que embalam um fim de tarde de outono.

Bom tê-lo por aqui. Grande abraço!
André Ferrer disse…
Montevidéu é antiga, mas tem um dedo do Mujica naquela belezura toda. Eu sou um cara que fica ofendido quando chamam o Uruguai de paraíso fiscal austral. Creio que você também seja. Belo texto.
Bianca disse…
Belíssimo texto. Cada palavra, acentuação bem colocada, ironias proferidas com tanto cuidado e respeito... Hoje a primeira pergunta que me fizeram pelo whatsapp, foi: você conhece Montevideo? E pá, vejo o link do seu texto rs
Alfonsina disse…
Jander, que texto delicioso! Quando estive em Montevideo fui hospedada por um casal de amigos do meu pai. Eu era adolescente e não tenho muitas lembranças da cidade, mas o aconchego do seu texto reflete muito bem a lembrança que ficou comigo deste casal. É isso, nada de excepcional mas algo definitivamente encantador. Adorei a sutileza do seu humor e das suas ironias.
Karla disse…
Você sabe usar as palavras pra descrever coisas que são indizíveis. Obrigada por me fazer relembrar dessa viagem através do teu texto.
Albir disse…
Muito bom, Jander! Convenceu, mesmo tendo classificado como indizível. Preciso conhecer!

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