EVENTOS ON-LINE INCRÍVEIS COM A VENDA DE UM CURSO NO FINAL >> André Ferrer
O estagiário passou o pano na superfície e chicoteou a madeira. Lembrou, ao designer, um daqueles engraxates do centro da cidade.
— Grato — disse ao rapaz. — Colocaremos o computador que está na manutenção aqui. Amanhã, bem cedo, eles entregam. Espero que antes da Bea chegar. Por falar nisso, vamos nos encontrar no Bar Gaivota, logo mais, com um cliente.
— A dona Bea é freela na agência, mas é fixa no happy hour.
— O que foi? — fez Guto.
— Nada — Santos acudiu. Ele também era dono da agência. — O moleque não disse nada. Ô, estagiário, cai fora. O seu horário já terminou.
— Fui — fez o rapaz. Desapareceu no corredor.
— Guto, eu também já vou.
— Por que não me acompanha? — fez Guto ao sócio. — Quanto mais gente melhor para convencer aquele cabeça dura. Bom para o nosso negócio.
— Mas é gente demais para o seu negócio. A Bea já basta.
— Entendi. Entendi. Até amanhã.
IMAGEM: PxHere |
— Guardei para vocês. Como sempre — disse o garçom habitual.
Sentado, Guto pediu um chope. Tomou dois naquele um quarto de hora. Bea nem aparecia nem se manifestava na tela do smartphone.
Certa vez, acontecera o mesmo. Guto enviou uma chamada de voz. Ela respondeu, secamente, que não iria. Quando comentou com Santos acerca do ocorrido, o sócio riu:
— A espanhola, dizem, é fogo. Tenha cuidado. Na outra agência, onde trabalhei, uns caras comentaram que ela é casca grossa. Quando não quer, não se amarra. Tem personalidade. O sinal de que o relacionamento acabou, dizem, é um presente. Ela nunca discute a relação. Quando não quer mais, vai embora. Meio que, para compensar, presenteia o sujeito.
Realmente, Bea tinha uma secura que, às vezes, chegava perto da grosseria, mas esse traço da sua personalidade era o que mais encantava o designer. Havia um aspecto muito comum, nas pessoas, que irritava Guto Gonçalves e que, de certa forma, estava ausente tanto em Bea como em Vânia. Cada vez mais, ele odiava o modo como todo mundo fundamentava suas convicções com convicções. As pessoas acreditavam naquilo que elas queriam e ignoravam qualquer autoridade que não fosse a própria convicção.
Ele chamou o garçom. Pagou. Havia, naquela quinta-feira, um quê de caos. O velho computador tinha resolvido travar pouco antes do intervalo do almoço. A tela do Photoshop congelada. Santos e o estagiário ligando, a cada dez minutos, para clientes. Avisando sobre o atraso do job. Então, quando entrou em casa, aquela mesma sensação de que havia mais caos do que oxigênio no ambiente regressou.
— Vânia? — Guto chamou. A namorada não respondeu. Então, ele foi à cozinha. Tudo estava exatamente como na véspera.
Sobre a pia, uma sanfona de panelas. Pratos encavalados. Vasilhas encaixadas. Pilhas de gordura. Num canto obscuro, entre a geladeira e o filtro de água, travessas cheias de talheres.
Dentro da geladeira, o cenário era de terra devastada. Um iogurte natural — aberto — e meio salsichão ressequido dentro de um prato. Guto Gonçalves pegou o telefone e pediu uma pizza.
Vânia, sua namorada, dividia o apartamento com ele há três meses. A faculdade dela ficava a alguns quarteirões apenas. Ela ia de bicicleta. Tinha todos aqueles hábitos e opiniões que a diferenciavam dos milhares de convictos que justificavam as suas convicções com outras convicções. Um belo dia, contudo, Guto percebeu um defeitozinho nela. Cruzar o parque pedalando, de repente, tornara-se a única remanescente de uma gama de atividades ao ar livre do início da suas vidas em comum. Inúmeras ações bastante caseiras — e necessárias — também foram simplesmente desaparecendo com o correr das semanas.
Uma vez mais, enquanto se aproximava da copa, Guto sentiu vontade de abrir o jogo. A mulher, entretanto, sempre o demovia. Com certeza, não seria diferente. Enquanto a secura e a corda bamba oferecidas por Bea tornavam-no receoso lá fora, dentro de casa, o que incomodava era aquela procrastinação praticada intensamente por Vânia. Mas, tanto a namorada quanto Bea tinham aquele encanto que, na hora agá, demovia-o.
— Peça uma pizza.
— Já pedi.
— Obrigada — fez Vânia sem olhar para trás. — Eu estou num evento on-line. Muito obrigada.
Para ela, cada evento daqueles era uma estrada de tijolos amarelos. No início, ela depositava muita esperança, mas nunca era diferente. Perdia um tempão. Deixava os afazeres de lado. Procrastinava a faculdade. Tudo para, no final, ter apenas um curso a ser comprado.
A pizza demorou. Guto assistiu a um filme requentado de streaming. Foi dormir tarde e não viu a mulher espreguiçar-se e dizer que o evento tinha acabado. Na manhã seguinte, na porta da agência, encontrou o estagiário e o homem da manutenção. O computador consertado estava nas mãos do técnico.
— É por aqui — disse Guto. — Mas o que é que vocês dois estão esperando?
— Patrão. É que não tem lugar.
— Como assim? A gente arrumou aquela mesa ontem. Você limpou. É para colocar o desktop consertado lá.
Quando entrou, havia um iMac novinho em folha na tal mesa.
— O Santos?
— Ainda não chegou — disse o estagiário.
Então, Guto Gonçalves tirou o smartphone do bolso e leu uma mensagem de Bea: “Estou embarcando para Amsterdã hoje ainda. Ah! Decidi por um trabalho fixo agora. Fui contratada para organizar eventos on-line, por uma empresa de cosméticos sustentáveis, e não tenho dia, mês ou ano para voltar. Espero que goste do presente.”
Comentários
Essa é uma narrativa que leva a gente a pensar, de um lado, na necessidade/angústia da rotina e, do outro, no desejo/ansiedade da novidade.
Fiquei me perguntando se o Guto vivia algum conflito interno com a situação ou se dizia a si mesmo se o q o empurrava para o caso era o comportamento procrastinador da namorada - o que, em algum momento, seria uma desculpa bem conveniente para a canalhice...
Precisamos de mais textos assim!
Grande abraço 🤗
André, vc escreve bem demais, cara. A gente vê o escritório, acompanha as emoções do protagonista, 'entende' o lado meio calhorda dele, a fraqueza, ele sim, um procrastinador (que não se reconhece como tal!) e AMA o final 'chute na bunda' q ele tanto merece.
A pequena observação do estagiário, introduzindo logo o que era tudo aquilo, de maneira tão sutil, foi toque de mestre.
Mr. Ferrer!