COLOMBINA DE MIM << SORAYA JORDÃO


 

Novamente se aproxima o carnaval, e, mais uma vez, me deixo levar por esse desassossego interior que vem acompanhado de um exacerbado ânimo para viver, sorrisos pelo rosto, arrepios no corpo e samba no pé. Falando desse jeito, parece que toda a preparação para o grande dia é um bálsamo revigorante do existir, mas não é bem assim. É nesse ponto que me deparo com uma certa perplexidade e derrapo nas curvas sinuosas da paixão. 

Os ensaios começam meses antes da apresentação oficial da escola de samba. Nesse período, o componente tem o compromisso de ensaiar, obrigatoriamente, duas vezes por semana, na chuva ou no sol. Deve cantar o samba e evoluir em tempo integral durante os ensaios. Caso contrário, esporro geral.

No dia do desfile, aguardamos por horas, em pé, na concentração, até o momento de entrar na avenida. Quase sempre, vestindo uma fantasia quente, um esplendor pesado a machucar a cabeça ou os ombros com a responsabilidade de dançar, pular, cantar, harmoniosamente, de forma a encantar o público e os jurados. Tudo isso sem perder de vista a coesão da ala (não podemos deixar buracos). 

Quem assiste fica deslumbrado com a beleza do espetáculo, sem sequer desconfiar da doação e dureza envolvidas no processo. Aliás, o belo sempre mascara seu preço. O momento é divinal. Pisar naquela avenida é ser acolhido num abraço mítico. Algo do eu se dilui no nós: nossa escola, nossa ala, nossa comunidade, nosso amor. 

É no pavilhão que se dá a descoberta de que pertencer a uma comunidade é o mais genuíno empoderamento. Mas, não se enganem, a relação com a escola e com o carnaval é como qualquer história de amor verdadeiro. Às vezes, o peito transborda de sentimento, às vezes, desconjuramos o amado, maldizemos a relação, reclamamos de pouco caso com as nossas demandas, ameaçamos dar as costas e nunca mais voltar. 

Os amigos que ouvem os nossos lamentos tomam as nossas dores, dão conselhos, salientam os defeitos do amado, dão força para que o relacionamento acabe logo. Chegamos a prometer o rompimento. Mas a paixão é ardilosa, se atiça com o som do tamborim. Rebola pro surdo. Se enamora da cuíca, beija o atabaque, sacode o chocalho, nos faz enlouquecer com o repique. É um chamado que não se pode ignorar. 

Ninguém entende os motivos da reconciliação. Talvez não haja uma justificativa aceitável para os parâmetros da realidade. Fazer o quê? Não há maior deleite do que sorver a vida que a paixão nos serve.

Como cantou a minha amada Imperatriz Leopoldinense em 2011: 

No carnaval, uma injeção de alegria 
Dividida em doses de amor 
É a minha escola a me chamar, doutor 
Posso ouvir o som da bateria 
O remédio pra curar a minha dor 
Eu quero é sambar 
A cura do corpo e da alma no samba está
Sou Imperatriz, sou raiz e não posso negar
Se alguém me decifrar 
É verde e branco meu DNA

Comentários

Jander Minesso disse…
Uma vez, eu pude gravar um ensaio da Portela na Sapucaí. Vi cada detalhe desse festival de esporro que você mencionou. Sua descrição foi primorosa.
Anônimo disse…
Esse texto é um primor! É exatamente isso que o desfilante sente!
Anônimo disse…
E quem consegue fugir de uma paixão como essa?
Lindo o seu texto. Entrega e amor pela a sua escola de samba.
Mário Baggio disse…
Lindo o texto, Soraya. Toda paixão tem dois lados. Para poder brilhar, tem que botar, nem que seja um pezinho, primeiro na escuridão.
Sandra Modesto disse…
Adorei o texto. Carnaval é uma festa maravilhosa. Acompanho pela TV. Torcendo pela mocidade independente. Gosto muito da Portela por causa do Paulinho da Viola.
Sandra Modesto disse…
Adorei o texto. Carnaval é uma festa irresistível.Gosto da Portela por causa do Paulinho da Viola, mas sou mocidade independente.
Zoraya Cesar disse…
Seu relato foi tão bom e amoroso, que até eu, q nao gosto de Carnaval, senti vontade de participar desse momento que vc colocou tanto sentimento, serpentinas e confetes, sem perder os dois lados de uma paixao.
Albir disse…
Muito importante conhecer esse lado do sambista, Soraya.
Minha solidariedade e meu agradecimento pelo espetáculo que nos encanta!

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