NOME >> Carla Dias


Naquela época, para mim gente não tinha nome, mas acho que por eu nunca ter perguntado. Não era por mal, eu apenas não conseguia decorá-los, porque minha cachola teimava em perceber coisas mais importantes. 

Esse negócio de saber nome veio com o tempo e a necessidade que ele arrastava junto, enquanto passava. Mas, moleque de tudo, eu me importava mais em entender quem eram as pessoas, e descobrir um jeito de não esquecê-las, porque minha tia, a Tia das Rezas, disse que era feio esquecer dos outros, o que era muito ruim e gerava uma barbaridade chamada solidão.

O Seu Mel era vendedor de mel que fazia ponto às terças, em frente à loja da Dona Fantasia, lugar que bombava na época de Carnaval. Tinha também a Senhora das Couves, que fazia uns arranjos lindões do legume, colocando-os sobre uma banca, logo na entrada da quitanda. A Perfumista, comentavam, era uma quase centenária – demorei a entender que ela tinha quase cem anos de idade – que me confidenciou, pouco antes de se desligar da função de lidar com cheiros, que nunca tinha sido beijada. Não entendi, naquele momento, o que isso significava, até levar quinze anos pra beijar alguém.

No prédio onde morava, era vizinho do Seu Tomada. Não havia alguém mais habilidoso do que aquele senhor de cabelo lambido pra resolver problema que envolvia eletricidade. Além disso, ele fez uma árvore de Natal só com tomadas que ganhou a página principal do jornal do bairro, quando ele ainda vinha somente em papel. 

Naquela época, tinha uma gata morando nos corredores do prédio, e, sim, pra mim ela era gente. Ninguém sabia ao certo em qual andar ela estava, porque vivia em movimento. Zeladora Miau era de todos, o que garantia alimento, mas ninguém chegava perto dela, eu nunca soube de quem a tivesse tocado. Eu achava lindo como ela se afastava das pessoas, elegantemente, sem dar satisfações ou se desculpar por isso.

Daí eu tive de aprender nomes, decorar muitos que, não tardou, passei a desejar esquecer. Conferir tantos outros em documentos que não me interessavam. Saber mais do que meu estômago aceitava de tantas pessoas.

Meus pais ainda vivem naquele prédio. Dona Leveza – nunca conheci alguém tão sorridente – e Seu Bravo, que era carrancudo, sim, mas gente boa, e estava sempre disponível para entregar quem fosse à polícia, tivesse o sujeito assaltado a geladeira de casa ou o banco das orquídeas da Dona Flor, amiga da família.

Ontem revisitei a leveza de saber mais sobre as pessoas do que seus nomes. Passando pelas ruas do bairro, não vi Seu Mel a servir dulçor, nem a Senhora das Couves a embelezar com legume a passagem. Não vi nenhum daqueles que enfeitaram a minha infância de reconhecimento de gente, nem a Zeladora Miau, que sumiu sem deixar endereço. Me deu uma tristeza que Tia das Rezas disse ser prima de primeiro grau da solidão. 


carladias.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
Deve ser por isso que algum filósofo disse que “somos aquilo que fazemos repetidas vezes.”
Anônimo disse…
Amei, Carlinha!
Albir disse…
O negócio de saber os nomes veio com o tempo. E quando veio, trouxe nomes bonitos e significantes. Nada de nomes inúteis, como imperadores romanos, anjos desconhecidos ou heróis do passado.
Zoraya Cesar disse…
"Me deu uma tristeza que Tia das Rezas disse ser prima de primeiro grau da solidão". A nostalgia do que nao existe mais é táo profunda e dilacerante que a gente devia saber da existência dela desde sempre. Pra nao ser, também, assustadora.

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