PEQUENAS EPIFANIAS >> Sergio Geia
Tenho muita coisa do Caio Fernando Abreu, mas, queria mesmo, suas Pequenas Epifanias. Nos últimos dias de 2024, toda manhã, eu colocava na vitrola uma playlist de piano, acendia incenso, sentava na sacada e lia duas, três crônicas; às vezes parava, olhava o céu, as pessoas batendo papo na calçada, fechava os olhos, respirava, depois voltava à leitura.
Não sei quando começou essa minha adoração por ele. O primeiro livro que li, Morangos Mofados, de 1982, de contos, já me capturou de jeito, inclusive para o gênero. Depois encontrei uma crônica aqui, outra acolá, e fui descobrindo um Caio exageradamente autobiográfico. Sua vida lá, contada linha a linha, sem medo de se expor, despudorado, autêntico, a revelar amores, amigos, inimigos, jardins, viagens, e Ela, a doença que o levou, assim como fez com Renato Russo, Cazuza, Lauro Corona, Betinho, Carlos Augusto Strazzer, e tantos outros gênios.
Sempre que estou em São Paulo, Caio Fernando Abreu me aparece. Quando eu passo de Uber pela Doutor Arnaldo é instintivo. Os muros do Cemitério do Araçá, o Emílio Ribas, é tanta coisa que vem. Olho cada janelinha do hospital, vejo Caio em um dos quartos, com a visão nos muros brancos do cemitério; logo depois, sentado na cama, escrevendo mais cartas para além dos muros. Ou quando passo a pé pela Haddock Lobo, em frente ao edifício Canopus, e me lembro de Onze fitas, crônica onde ele relata as cenas de um assassinato, o corpo coberto por uma folha de jornal largado em frente à sua porta. Ou quando subo a Augusta, vindo, de preferência, da praça Roosevelt, procuro atento o bar (será que ainda existe?), no trecho Augusta-cidade, não Augusta-Jardins, e vejo a mulher de cabelo pintado, muito maquiada, minissaia e decote fundo, descrita em Pálpebras de neblina.
O meu Pequenas Epifanias está todo rabiscado, anotações, caneta marca-texto, trechos inteiros destacados. Antes de cada crônica, um resumo que escrevi à mão. No sumário, a marcação do número de vezes que li cada uma das crônicas, e foram muitas.
Numa das leituras do final do ano, abri em Para uma companheira inseparável. Imaginei Déa Martins, sua grande amiga, presente na crônica As nuvens, como já dizia Baudelaire..., mas o resumo no alto da página me desmentiu:
Essa companheira inseparável, achei que fosse uma amiga. Não. Caio fala da tosse ou, como ele mesmo intitulou, “A Tosse”. Talvez consequência da AIDS, não sei. Estamos em agosto de 1995, Caio faleceu em fevereiro de 1996.
No final, ele se desculpa pelo assunto escolhido. Diz que os leitores devem estar achando-o insuportavelmente chato; dá a entender que ele mesmo não se aguenta, Caio sendo Caio.
Uma outra de que gosto muito chama-se As primeiras azaleias. Imaginem a cena: numa tarde cinza de maio, um domingo, Caio está sentado em sua escrivaninha de trabalho que fica de frente pra janela. Atrás do vidro da janela, há um casal parado na calçada. A cena está em seu campo de visão. São muito jovens. Sobem devagar a ladeira (fico a pensar: será a Frei Caneca, onde Caio morou?). A garota está chorando. O rapaz parece não ligar. Ela o abraça, tenta beijá-lo, ele vira o rosto. Imaginou? Então pare de imaginar e leia As primeiras azaleias, é ótima.
A minha literatura sofre fortes impactos de sua obra. Caio Fernando Abreu é uma de minhas referências e Pequenas Epifanias, seleção de crônicas publicadas no jornal O Estado de São Paulo, de abril de 1986 a dezembro de 1995, com prefácio de Antonio Gonçalves Filho e quase prefácio de Maria Adelaide Amaral, é um banquete para quem gosta do gênero.
P.S.: 1) Livro citado na crônica: Pequenas Epifanias, Caio Fernando Abreu, Editora Nova Fronteira, 4ª edição; 2) Ilustração: Pra sempre teu, Caio F. Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, de Paula Dip, Editora Record, 4ª edição, pág.16.
Comentários
Admiro tudo que escreves . Amo mesmo. É tão natural na escrita que me vejo dentro dela.
Você excreve com uma naturalidade que já é seu feitiode ESCREVER E nos mostrar a realidade do que escreves.
Leio com prazer tudo que escreves e sinto esse Geia nasceu para ESCREVER crônicasque?nos faz deliciar . Parabéns querido.
Não sou anônimo Ok.