OLHOS E CADERNOS >> Albir José Inácio da Silva
Naquele começo dos sessenta, meninas não falavam nem
escreviam certas coisas. Mas a coisa foi escrita no caderno e lida pela mãe e
depois pelo pai de uma delas. Era uma dessas piadinhas que misturam palavras e
desenhos com um significado meio bobo e meio sexual, o que foi considerado uma
afronta pelos genitores.
Na sala, a diretora, o pai e a professora, numa espécie de
inquérito, olhavam o caderno, falavam baixo, consideravam. Beto era o único
menino nas carteiras da frente, cercado por cinco meninas. Essa localização era
determinada pelos resultados da última prova, e ele sempre conseguia ficar por
ali. O caderno foi mostrado a cada um deles, enquanto seus rostos eram
demoradamente examinados pelos investigadores.
Beto estava tranquilo por duas razões: ele não tinha escrito
aquilo e suas garatujas em nada se pareciam com aquelas delicadas, redondas e
femininas letrinhas colocadas no papel. Por isso, deve ter olhado um tanto
desafiadoramente para os investigadores, que logo retornaram à mesa e
confabularam por mais algum tempo. Pai e diretora concordaram, só a professora,
Maria do Carmo, olhava Beto com olhos inconformados.
O pai saiu primeiro, fuzilando o menino com os olhos. A
diretora o seguiu com cara de indignada. Só então Beto compreendeu o arranjo que
satisfazia a todos: o pai tinha um culpado, um moleque abusado de quem sua
filha precisava ficar distante; a diretora encerrava o caso sem nenhum
estrépito; e as meninas ficavam protegidas já que, naquele começo dos sessenta,
meninas não falavam nem escreviam certas coisas.
Beto não entendeu nada, não foi acusado de nada, não se
defendeu de nada e não tinha do que reclamar, embora sentisse cheiro de
injustiça. A questão era simples, bastava confrontar as letras nos cadernos,
mas isso não interessava a ninguém. O garoto ficou muito incomodado com o olhar
daquele pai. Teve vontade de falar, mas não sabia o quê, nem com quem.
Em seu socorro só vieram os olhos de Maria do Carmo. Era o
que ela podia fazer diante da iniquidade baseada em silêncios e conveniências.
Doce olhar de professora que o acarinhou pelo resto da aula. E Beto a amou para
sempre.
Alguns dias depois, no vinte e dois de abril, os cartazes
tinham de ser entregues no dia anterior se quisessem concorrer ao direito de
exposição nas paredes da sala. Por preguiça ou brasileirice, o de Beto só veio
quando os demais já estavam nas paredes. Ocorre que Maria do Carmo resolveu
defender, perante a diretora, as qualidades do trabalho “daquele atrasado, mas
ótimo aluno”.
A autoridade não perdeu a chance para disciplinamento e,
mesmo concordando que o trabalho não era de todo ruim e o aluno não era de todo
ruim, ele precisava entrar na linha. O cartaz seria exposto, mas na parede de
trás, os colegas teriam que se virar para vê-lo e quem chegasse à porta não o
veria. E todos se lembrariam do castigo pela indolência de Beto. Ela decretou e
foi embora.
De novo o desamparo e de novo a salvação pelos olhos da
professora, que ainda sorriu e murmurou:
- Não ligue, não. Eu vou olhar para ele o tempo todo.
Beto que já a amava, confirmou seus votos.
OBS: Este texto integra o Projeto Crônica de um Ontem
e foi publicado originalmente em 23 de abril de 2012.
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