UMA DAS NOITES DE NINFÉIA >> Ana Raja


Há dias ela vem aqui, não sei o que deseja. Não gosto do seu olhar ressecado, deslubrificado, a orbitar a paisagem fria dessa época do ano. Por baixo do sobretudo, um vestido de seda bege. Na altura do joelho. Renda na barra e no contorno dos seios. Nos pés, uma bota de cano baixo de cor vinho. Na lateral da sola, uma sujeira antiga, impregnada nos seus passos. Escuto de longe a cadência do seu peso no cimento úmido e já me arrepio. Tento me fechar,  evitando carregar aquela energia suspeita.

Se aparecesse uma hora depois da habitual, me encontraria recolhida.

Tira da bolsa um maço de cigarro. O fogo demora a pegar na ponta branca do papel. Senta ao meu lado e puxa a fumaça, com tal força, que, mesmo na condição de espectadora, me faltar o ar. Quando lança para fora o que restou, uma leve tontura me balança. Fuma um, dois, três, então deita de bruços no mármore respingado de água parida pelo sereno. Quando se levanta, bicos dos seios salientes por baixo da seda fina. Calcinha marcada na única parte que me parece suave. 

Talvez sinta saudade.

Raiva.

Talvez sinta solidão.

Antes de ir embora, se aproxima de mim. Abaixa a cabeça, e me cheira com a mesma força de quando puxa a fumaça pesteada. Perco pétalas com o seu toque desagradável. Minha cor - sempre tão viva - começa a esmorecer. 

Ela se levanta, pega a bolsa caída no chão, faz o sinal da cruz errado. Avisa que amanhã me levará para a puta que destruiu a sua vida. Me fecho no cair da noite e rezo para morrer de vez.

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As dores delas, primeiro livro de Ana Raja, está a venda no www.editoraurutau.com.

anaraja.com.br


Comentários

Jander Minesso disse…
Demorei para entender o que estava acontecendo. Quando caiu a ficha, reli do começo. Deve ser doloroso aguardar esse destino, mas vale o ditado clássico: das piores situações saem as melhores histórias.
Sua crônica tem a delicadeza e os espinhos de uma dlor. Lindo D+
Zoraya Cesar disse…
quem ficou tonta fui eu, com tantas leituras e camadas. Ana Raja, a Sutil
Anônimo disse…
Dos textos mais curtos podemos extrair as mais doces emoções; nas pequenas palavras encontramos o extraordinário. Uma crônica simples, porém bela. Um final inesperado repleto de sentimentos: dor, saudades e melancolia. A espera de que algo volte a ser como era antes... Lindíssimo!
Albir disse…
Ana, você transforma as dores delas em nossas dores. Uma espécie de solidariedade obrigatória. Muito bom!
Mário Baggio disse…
Uma dor generalizada, impossível não sentir empatia.

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