O ANIMAL ENJAULADO DENTRO DELA >> Zoraya Cesar
Houve um tempo em que o casamento durava até que a morte dissolvesse os laços matrimoniais (ficou bonito isso, hein?). Vocês podem pensar que estamos falando da Idade Média, mas não. Estamos falando do séc. XX. Meados. Por aí. Enfim, confiem na minha informação. Até porque essa história é verdadeira.
Inesita casou cedo. Marisvaldo era bom partido, bom sujeito, bom marido e bom pai. E era simplesmente louco por ela.
Que sorte, suspiram os corações românticos, esquecendo que a vida tem nuances invisíveis aos olhos externos.
Como disse e afianço, Marisvaldo era louco por Inesita. Um grude só. Um Cascolar. Ciumento? Nunca! Possessivo? De jeito nenhum. Machista? Longe disso. Apenas extremamente apaixonado e dependente, Marisvaldo não vivia sem a esposa a seu lado. Gostava da companhia dela, ora pois.
Andavam o tempo todo juntos, mãos dadas, pra cima, pra baixo, pros lados, pra todos os lugares - trabalho, cozinha, médicos, cabeleireiro... Marisvaldo levava, buscava, aguardava. Fizesse sol, chuva, inverno ou verão, blá, blá, blá. Onde ia a corda, ia a caçamba. Sentiram o drama? Não? Esperem: Inesita desistiu de encontrar as amigas. Marisvaldo ligava a toda hora, perguntando se "seu docinho" ia demorar.
Não vou cansá-los com mais detalhes, de cansada bastava Inesita.
Escusado dizer que ela até valorizava um marido que colocava o pão na mesa (pão, galera, eu disse pão!) e não dava trabalho: nada de pular cerca, farras, jogatinas. O passar dos anos, no entanto, é implacável e, me perdoem os sonhadores, aquele grude todo começou a incomodar. Muito.
Não adianta dizer ‘os incomodados que se mudem’, porque não é assim que funciona a vida; nem ‘incomodada ficava sua avó’, porque não conhecemos a avó de Inesita. Conversar com Marisvaldo? Inútil. Essa noção de ‘preciso de um espaço’ estava além de sua compreensão. Ficaria arrasado - a felicidade da mulher era tudo para ele.
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão. *
Inesita conformou-se. Ou assim pensou.
Porque, como dizia a música, ‘sentimento ilhado, morto e amordaçado, volta a incomodar’*. Aquele
desassossego sem nome foi se corporificando num animal, um animal selvagem e feroz, tanto mais selvagem e feroz, porque enjaulado.
desassossego sem nome foi se corporificando num animal, um animal selvagem e feroz, tanto mais selvagem e feroz, porque enjaulado.
Ninguém percebia que o rosto inexpressivo, sua boca sorrindo no vazio, não combinavam com o brilho ameaçador no fundo de seus olhos. Inesita sentia o bicho andando de lá pra cá em seu corpo, em sua mente, um animal perigoso, que exigia constante vigilância.
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A juventude, essa ingrata, foi embora sem dizer adeus. A maturidade chegou educadamente, instalando-se no sofá. E um dia ela também cansou daquela vida e cedeu definitivamente o espaço para a velhice (terceira idade é o @#$%).
Essa dama, como todos sabem, e se não sabem, vão saber, é uma meleca.
Quando os achaques da idade atacaram, Inesita cuidou de Marisvaldo com todo desvelo e paciência. A cuidadora era inútil. Consultas, fisioterapia, comida, remédios, tudo era com a mulher, Marisvaldo não queria mais ninguém. Ah, o amor!
Saudável e jovem, Marisvaldo era um Araldite. Velho e achacado, visgo de pegar passarinho. O passarinho era Inesita, claro. (O que ninguém percebeu, nem a própria Inesita, é que o animal enfurecido dentro dela devorara o passarinho).
A saúde de Inesita também começou titubear (ah, a velhice!). Pressão alta, tremores, insônia durante a noite, sonolência durante o dia, dores nas pernas.
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Faziam um casal tão bonitinho, passeando na praça! Ele, de andador; ela, de bengala. Sempre juntinhos, grudadinhos, oh! Que fofo, dizia um. Quero um relacionamento desses, invejava outro; se não for para envelhecer assim, nem caso, afirmava um e outro. Ah, os iludidos!
Se ela acelerasse o passo, Marisvaldo, possuído pelo espírito do Papa Léguas, arrastava velozmente seu andador, gritando ‘velha, velha, me espera, amor’.
Ah, sim, esqueci de comentar que, ao atravessarem a fronteira da meia idade, Marisvaldo cismou de trocar a alcunha de ‘docinho’ para ‘minha velha’. O animal dentro dela rugiu, batendo enfurecidamente nas grades, mas não saiu da jaula. E ‘minha velha’, Inesita passou a ser.
Os 80 chegaram. Não a década, mas a idade. Inesita sentia dores no corpo todo e uma sensação de afogamento inexplicável (é a idade, diziam), uma abissal nostalgia do que não vivera. Sentia que a morte estava cada vez mais perto. (O animal dentro dela, arranhando a cela, em desespero e furor).
Queria sumir.
E numa noite de calor extremo, uma Inesita exausta e derretida desligou o aparelho auditivo e entrou numa espécie de torpor, dormindo acordada. Sonhava que caminhava descalça pelo deserto do Saara, com o cachecol do Pequeno Príncipe no pescoço, procurando por um escorpião salvador.
(Marisvaldo chamou, chamou, chamou, mas ela não ouviu.)
Encontrou Marisvaldo estirado no sofá.
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Chororô, velório, enterro, missa de 7º dia. E tudo se acabou.
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Inesita se livrou de todas as coisas do marido. Vez ou outra, alguma lágrima caía, mas secava rapidamente. Gostara de Marisvaldo sim, um homem bom.
Jogou fora todos os calmantes, ansiolíticos, soníferos, remédios para o coração, tudo, com um prazer quase sensual. Nem ela, muito menos Marisvaldo, precisariam mais deles. Ela se curara de todos os achaques. Velhice é o $%¨%.
Nunca fora tão feliz. Fazia tudo devagar, desfez-se do relógio e do celular. Saía de manhã e só voltava ao final da tarde. À noite, divertia-se em ficar trocando os canais até escolher o que queria. Assistia
sossegada, os pés pra cima, comendo no sofá.
sossegada, os pés pra cima, comendo no sofá.
O animal dentro dela entrou em hibernação, minguando aos poucos.
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A campainha soou, ominosamente. Inesita teve um mau pressentimento. O animal dentro dela estremeceu, inquieto, em seu sono.
Abriu a porta.
- Mamãe, minha consciência pesou de vê-la aqui sozinha, sem papai. Vim ficar com você!
E foi entrando, com a sem cerimônia dos filhos sem noção.
Atônita, Inesita sentiu o sangue ferver. Agora que provara o doce gosto da solitude, agora, já velha, com pouco tempo restante, não estava disposta a perder seu último - e único - naco de paz nessa vida.
O animal dentro dela acordou rugindo, furioso, abalando a jaula. E Inesita soube, inequivocamente, o que fazer. Conversaria com o filho (grudento como o falecido). Se ele não saísse pelos próprios pés, sairia com os pés juntos, na horizontal, dentro de um caixão. Como o pai.
Ela não desligara o aparelho auditivo, não deixara o andador longe das mãos de Marisvaldo, não ‘esquecera’ de dar-lhe o remédio do coração, para, ao final, ver seus planos fracassarem.
Ela se livrara de um. Não custaria se livrar de outro.
(Sentimento ilhado, morto, amordaçado...volta a matar...)
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Imagem de capa: cortesia finíssima da amiga Nádia Coldebella, a Countess Velvet
*Cotidiano- letra de Chico Buarque
https://www.letras.mus.br/chico-buarque/82001/
*Revelação - cantado por Fagner
Comentários
Esperou muito tempo para dar uma solução ao problema.
Zô, adorei cuidar dessa ilustração. A ideia de um leão raivoso prestes a comer o passarinho não desgrudava da minha cabeça. Grande bjo!!
Jander - ah, Jander, me deixou tão feliz!
Anônimo - pois é, feras enjauladas. Vc já viu alguma fera guardar amor por seu carcereiro?
Nádia - falou tudo. As sombras que se escondem em nós se escondem também de nós, na verdade, ninguém sabe do que é capaz. E nem sei como agradecer sua ilustração maravilhosa. Só mesmo uma irmã da Fraternidade da Pá pra fazer isso.
branco - ahahah covarde, atrasada e louca. São muitas, amigo, muitas. E obrigada!
Nando - vc e sua gentileza de sempre!
Carla - pois é, nunca dá mto certo esperar endoidar pra se colocar em primeiro lugar. Mas tem pessoas que só conseguem depois de endoidar mesmo
Ana - Amém! e que, assim, não deixem vítimas pelo caminho (não q algumas não mereçam... hehehe)
Albir - Dom Albir... HAHAHAHAmeeei demais esse comentário.
Soraya - sem dúvida, Soraya, sem dúvida!
A todos, muito obrigada!