O CAMINHO DA ILUMINAÇÃO NÃO PASSA PELA INVEJA - UMA AVENTURA DO DR. MÁRCIO, O INCANSÁVEL >> Zoraya Cesar

 

E eis que Dr. Márcio decidiu passar a virada do ano sozinho em um retiro espiritual. Ia perseguir a iluminação.

Quando aposentou e passou da meia idade para a idade e meia, Dr. Márcio olhou para si mesmo e para sua vida e teve de concordar com o que o mundo pensava: eram, ambos, muito chatos, previsíveis e sem graça. Mas sempre era hora de mudar e seu modelo era o cunhado.

Ah, o cunhado. Já nascera surfando longboard. Vivia bronzeado, cercado de mulheres, amigos, festas. Trabalhara como agente de viagens e conhecia o mundo todo e todo mundo. Se um dia se candidatasse a vereador seria eleito deputado. Montanhista, mergulhador, motociclista, piloto de asa delta, não havia esporte radical que o cunhado não fizesse. Tinha quase a idade de Dr. Márcio, mas parecia 10 anos menos. Era safo. Era bon vivant. Era a pedra no sapato do Dr. Márcio.

Que cismou em também ser aventureiro e descolado. Mas tudo o que fizera até então redundara em retumbante e ressentido fracasso*.

O cunhado passara alguns meses em um retiro no Tibet. Dr. Márcio não iria tão longe, escolheu um de uma cidade próxima, Retiro Benedictus Hinduh. Pronto! Finalmente, ia também ser ‘descolado’, zen, cool! Já se via alcançando o Nirvana com algumas poucas meditações, desintoxicado, saudável, enfim, um novo homem, que proferiria palavras sábias e contaria histórias que não fizessem a plateia dormir (como soía acontecer).

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Na entrada havia uma placa: ‘Do pó vieste e ao pó voltarás, um caminho fácil leva a um destino fugaz’. Dr. Márcio não entendeu o sentido nem a rima, mas engoliu muito do pó levantado pelo carro naquela terra nada batida.

Chegou empoeirado, garganta seca, olhos lacrimejantes, esfaimado e cansado. Realmente, a estrada para a iluminação era árdua.

Faltou luz? Perguntou ao recepcionista (cuja aparência lembrava a do personagem Pai Mei, de Kill Bill) ao ver o saguão iluminado apenas por velas de led.

- Não, caro hóspede, evitamos luz elétrica, para facilitar a introspecção.  Também não temos wi-fi nem sinal de qualquer operadora. Estamos isolados do mundo lá fora para podermos nos encontrar aqui dentro. – E apontou para o próprio peito.


O alojamento ficava a uns 500 metros da recepção. O caminho estava na penumbra, uma escada de degraus largos de pedra que, em caso de chuva viraria um tobogã vertiginoso e provavelmente fatal.

O jantar era servido nos quartos. Uma sopa morna de missô com legumes extra cozidos. Aqui, disse o recepcionista, parecendo um Mefistófeles oriental, aqui, repetiu, prezamos as refeições frugais, para nos afastarmos do pecado da gula. E foi embora, deixando Dr. Márcio a sós com essa revelação, a sopa e uma única vela.

E o que iluminava a parca luz daquela única vela? Um quarto ascético: paredes nuas, catre, criado-mudo (mesinha de cabeceira para os mais sensíveis), cadeira. Só. A janela dava para uma densa floresta escura. Humildemente, Dr. Márcio sentou-se e tomou a insossa sopa de missô que lhe cabia naquele latifúndio.

Na hora do banho... que banho? A noite estava fria, a água, gelada. Lavou os pormenores, o sovaco e deitou-se por satisfeito no pedaço de catre que lhe cabia.  

Deitou mas não dormiu. O estômago roncava, e os sons noturnos da floresta o deixaram amedrontado. Nunca acampara na vida, homus urbanus que era. O leito também não ajudava muito: estreito, se Dr. Márcio se virasse, cairia ao chão; a palha que o recobria era fina e cheia de bolotas. Então, pensou, essa era a vida de um asceta. Mas, se o cunhado passara por isso, ele passaria também.

O cansaço o venceu às 2 da manhã, mas, lamentavelmente, às 3 começaram a soar sinos altíssimos, e alguém bateu à porta de seu quarto gritando que era hora de levantar. Dr. Márcio deu um pulo, o coração na boca, pensando tratar-se de incêndio.  

Não era, felizmente. Ou infelizmente, nem sei.

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As atividades da manhã combatiam o pecado da preguiça.

E a primeira prática era a oração.

Pessoal da Ave Maria de um lado, pessoal do japamala de outro, sussurrava um monge vestido e tonsurado qual franciscano. Dr. Márcio, esperto que ele só, escolheu o terço, q só tinha 50 contas, contra


as 108 do japamala. O que ele não sabia, é que seria rezado o rosário inteiro, de 200 contas. Hahahaha. Ai, de que me rio? Sou muito cruel. Voltemos.

Ninguém conseguiu se concentrar. O estômago do Dr. Márcio roncava mais que o motor de um fusca engasgado e ele não parava de se contorcer, tentando achar posição na cadeira reta sem almofada.

Chegara a hora da meditação ativa, que se faz caminhando. Ele sentiu alívio. Melhor andar que ficar sentado naquela cadeira de Asmodeus.

A caminhada era por dentro da floresta. Não tinha trilha. El camino se hace al caminhar. E foi um tal de se agarrar em árvores, galho batendo no rosto, escorregões, descer de bunda, subir de quatro... e os mosquitos fazendo a festa (ele esquecera de levar o repelente, claro).

Chegou, aleluia, a bendita hora do café da manhã. Dr. Márcio mal se aguentava de cansaço, fome, dor no corpo. Mas achou que a iluminação estava chegando, já via algumas luzinhas aqui e ali.

Encimando a entrada do salão, mais um recado enigmático: “Vós que aqui entrais não comereis demais. Ouçam o som do silêncio”. Dr. Márcio não entendeu, mas acreditou.

Ah, a comida! Um espesso mingau de banana e aveia com canela. Café tão ralo que dava para ver o fundo do copo. Leite fervido. Queijo branco. Pão de cevada. A frugalidade, disse um monge que parecia o pai de Matusalém, é a base de uma mente sadia. Aquele hotel-mosteiro-católico-hindu existia há vários anos, isso deve funcionar de alguma maneira, pensou Dr. Márcio, impressionado.

Era proibido conversar. Dr. Márcio até tentou o som do silêncio, mas foi impedido pelos ruídos do sujeito que sorvia o mingau, do que mastigava a dentadura e do que triturava o pão com a boca aberta.

E depois? Dormir? Nãaaooo. Era hora de partir para a próxima atividade: cuidar da horta, dar comida às galinhas, limpar a estrebaria. Enquanto monges e hóspedes trabalhavam, um mestre – que devia ser descendente direto de Rasputin, tal a semelhança – falava sobre a importância daquele momento, para conexão uns com os outros e com a natureza.

Dr. Márcio só pensava em comida processada, em banho quente e cama macia. Mas todo suplício termina em algum momento e chegara a hora do almoço.

Ao se arrastar para o refeitório, foi interceptado por um dos auxiliares: “Antes de comer, temos de nos purificar. Por favor, acompanhe o grupo para o rio”.  Dr. Márcio quase desfaleceu. Tinha horror a rios! Cobras, jacarés, peixes carnívoros, candirus, arraias venenosas...

A água estava mais gelada que a do chuveiro e ele gritou como um porco degolado pra molhar as canelas magras, perturbando toda a conexão reinante.

Mas, almoço, outro aleluia!

Hahaha, aleluia pra quem, irmãos? Brócolis, chuchu, jiló, maxixe, tudo no vapor, sem temperos. Arroz sem passas. Feijão simples. E, de proteína, soja. Sobremesa? Manjar branco sem açúcar. Mas com ameixa preta! Apenas um prato para cada um, lembremos de combater o pecado da gula.

Dr. Márcio suava frio, antecipando o próximo horror.

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A tarde era dedicada à meditaçãommmmmmmm, à entoação de mantras sem fim e a palestras edificantes. Tudo muito iluminante, menos para o Dr. Márcio, para quem a tarde passou mais lenta que uma lesma doente. Ele sentia ímpetos de gritar.

Nem o lanche salvou a tarde. Um brigadeiro de biomassa de banana verde com cacau sem açúcar que deve ter sido cuspido da boca de Satanás, de tão intragável. Dr. Márcio comeu, no entanto, pois qualquer coisa era melhor que nada.

Tudo o que ele queria era deitar, mesmo que fosse naquela enxerga dura e desconfortável. Antes da hora de dormir, no entanto, uma última atividade, que poderia ser natação no rio, caminhada ou Tai Chi. Dr. Márcio escolheu a tai aula de chi. Até porque nadar em rio gelado ou caminhar pela trilha do inferno estavam fora de cogitação.

A aula foi uma sequência de golpes, contragolpes, golpes baixos. Havia homens até mais velhos (digo, idosos, arre que época chata!) que Dr. Márcio, mas mais ágeis, fortes, entusiasmados. Ele, coitado, parecia um bêbado.

Saiu de lá se arrastando.

Chegara, até que enfim, meu Deus, a hora de ir para o apartamento, dormir. Eram apenas 8 da noite, mas, no dia seguinte, seriam todos acordados, novamente, às 3 da manhã, para recomeçar as atividades.

Catre duro, barulhos noturnos estranhos, corpo dolorido, faminto, banhos gelados, nenhum vislumbre de iluminação, Dr. Márcio via os próximos dias como os piores de sua vida.

Escafedeu-se sem dizer adeus.

Contaria para a família que a experiência tinha sido maravilhosa. Não ia admitir que mesmo aquela aventura tão singela fora um desastre total.

Contaria. Mas...

Parou numa loja de conveniência e, faminto, comprou elma porcaria chips, cheeseburguer, refrigerante. Comeu sofregamente e comeu de novo. Acabou no hospital, com uma indigestão monstro, e teve de ser resgatado pela mulher e pelo cunhado, que ria de se acabar.

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Voltou pra casa humilhado, frustrado e longe, muito longe da iluminação. Ainda não fora daquela vez que seria considerado um sujeito ‘descolado’.

Nem do pecado da inveja ele se curou. No banco de trás do carro, deitado como um pacote morto, ouviu o cunhado dizer que dali a alguns meses iria à Austrália, como voluntário numa reserva para animais em recuperação, animais fofos, como dingos e diabos da Tasmânia. Entusiasmou-se. Uma reserva era como um zoológico, que acidente poderia acontecer?

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Mais aventuras do Dr. Márcio, o incansável. Aliás, quero reiterar que esse Dr. Márcio não é, repito e reitero,não é baseado num querido amigo homônimo, por mais q ele insista nisso. 

 A aventura inflável do Dr. Márcio - 2016 - quando o casamento vai bem, mas falta um pouco de emoção

Outra malfadada aventura do Dr. Márcio - 2018 - se você não está habituado a frequentar a noite de bares e casas noturnas da cidade, é melhor ir acompanhado. 

Dr. Márcio e sua aventura nas montanhas - 1a parte - 2019 ele queria porque queria ser igual ao cunhado: aventureiro, destemido. 

Dr. Márcio e sua aventura nas montanhas - 2a parte - 2019 - mas, e quem já nasce mingau sem nunca ter tido seu dia de araruta?

Dr. Márcio não desiste, o karma também não. A luta é acirrada - 2023 - em sua tentativa de ser um sportsman, tal qual o cunhado, Dr. Márcio não economizou esforços. Talvez devesse ter investido em outra aplicação.


Japamala

  • Christopher J. Fynn, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons
  • https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b1/Bodhi_seed_mala.jpg

Comentários

Anônimo disse…
A Zoraya está mestre nas aliterações e joguetes de palavras. Oba! Austrália à vista. André Ferrer aqui.
Marcio disse…
Zoraya, eu preciso perder o hábito de te contar as minhas aventuras.
Você não sabe guardar segredo!!!!
Leila disse…
Eu tenho que escolher entre rir e chorar lendo essa crônica e aventura! Eu queria saber se esse dr Márcio torce para o Botafogo(?)...☺️ Obrigada, Zoraya, ainda rindo muito😉❤️
Anônimo disse…
A inveja ainda vai matar esse sujeito! Escapou dessa (Zoraia foi piedosa para com ele) , mas dá próxima "crise de inveja" ele não escapa!
Carla Dias disse…
Fiquei exausta, faminta e desacreditada na possibilidade de iluminação só de ler. Bem-vindo de volta, Dr. Márcio!
branco disse…
Não aconteceu nenhuma morte, mas a crueldade esteve presente em todos os momentos, e isso é estilo, o estilo de uma boa contista. Apenas um senão... não sei o motivo d'ele invejar o cunhado, no final, a viagem para a Austrália, salvar bichinhos, que coisa mais woke. #gretalivesnomatter
Antonio Fernando disse…
Adorei, mesmo não morrendo ninguém. Kkkkk
Ana Raja disse…
Que desesperador esse lugar...hehehe.
Albir disse…
Sem uma gota de sangue, mas no limite da crueldade. Nem a um tiro de misericórdia teve direito o moribundo. Vai sobreviver para ser humilhado em outras paragens.
Erica disse…
Não sei porque ele foi embora... teria voltado magrinho depois de uns 3 dias... brigadeiro de biomassa de banana verde é muito chique. Não sei por que ele não gostou. A única coisa que estragou ali foi o jiló... esse foi o maior purgatório.. sua mente má não tem limites, Zoraya kkk
Jander Minesso disse…
O curioso é que ontem um amigo comentou sobre um retiro espiritual que fez. A descrição que ele deu do evento lembrou muito a do retiro do dr. Márcio. Já são dois exemplos me convencendo a não tentar a experiência.
Soraya Jordão disse…
Já vivi tardes que passaram mais lentas que uma lesma doente.

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