CONSUMIÇÃO >> Carla Dias


Impaciente, furou o dedo com a agulha ao tentar cerzir o vestido. Resmungou um palavrão, maldisse o universo, colocando nele a culpa por orquestrar a desordem da sua história. 

Levantar-se a cada dia com um planejamento diferente era exaustivo. Não saber a que veio, quem deveria se tornar, quais palavras proferir, qual incumbência existencial lhe cabia era incapacitante. Por isso as horas gastas a olhar para lugar nenhum em busca de um caminho que parecia se esconder dela.

Demorou-se a aplicar o curativo naquele furo mínimo, permitindo o sangue colorir um momento de sua existência. Depois tapou o ocorrido com curativo e foi varrer o quintal, deixando o vestido, com emenda inacabada, sobre a cama.

Escorregava a vassoura devagar no chão de terra, comentando consigo, a voz miúda, que talvez seu talento fosse roçar o impossível, como quando decidiu ser atriz, trancou a casa e partiu para a cidade vizinha, a fim de participar de uma trupe. Durou cinco minutos naquele lugar desconhecido, desconectada dos artistas a explicarem aos que chegavam a importância de sua arte. Havia nada para ela naquele lugar, nas intenções daquelas pessoas, no que chamavam, a voz tremida por um prazer que ela não compreendia, de vida.

Partiu várias vezes em busca nem sabe do quê. Em todas, voltou para casa, para os dois cômodos e o quintal a perder de vista, para as panelas herdadas da bisavó, os vestidos comprados no bazar da igreja, o colchão de fazer doer o corpo, a grande árvore debaixo da qual se sentava para ruminar sentimento conduzido por faltas às quais nunca soube dar nome. Sentia não caber em lugar outro que fosse, mas insistia na busca, porque as faltas não identificadas a mantinham inquieta, como se lhe faltasse uma parte.

Sabia que o espaço ao qual pertencia era de paredes frágeis, limitado, pouco chão. Mas se havia algo que não se atrevia a negar, era a boa sorte de estar cercada pelo perder de vista. Era o horizonte a lhe confortar os sentidos, pouco antes de o sol dormir, ou quando a rara chuva aparecia, acalmando o calor de seu corpo e a consumição de sua alma. 

---

Prisão, flores e luar, meu novo livro, está à venda no editorasinete.com.br/prisao-flores-e-luar.





Comentários

Anônimo disse…
Senti a angústia profunda da personagem. Estrangeira em todo lugar.
Jander Minesso disse…
Há quem diga que a gente só se encontra quando desiste de procurar, né?
Carla Dias disse…
Mas gosto de pensar que esse lugar está "em algum lugar". Obrigada pela leitura!
Carla Dias disse…
Faz sentido, é parte do caminho, porque quando se desiste de procurar, às vezes também se desiste da capacidade de reconhecer-se quando o o reconhecimento chegar. Viver não é fácil, mas é lindo. Beijos, Minesso!
Albir disse…
Não pertencia a lugares determinados, era do mundo todo, a perder de vista.
Carla Dias disse…
Isso mesmo... O olhar se espalhava.

Postagens mais visitadas