HIPOCRISIAS << SORAYA JORDÃO

 


Ao longo dos anos de trabalho, ouvindo adolescentes e jovens adultos, muitas vezes, me deparei com o sofrimento da escolha profissional. Não que eles sofressem pela dúvida do que gostariam de ser profissionalmente. Muito pelo contrário, a dor que lhes abatia era a do saber indubitavelmente. Esse desconforto opressivo parece acompanhar aqueles que são convocados pelas artes. Como se o interesse e o talento para pintura, cinema, teatro, música, literatura, dança só pudesse ser vivido enquanto hobby.

São raros os que recebem apoio de familiares e amigos nesse enamoramento com a arte enquanto relacionamento oficial. Na maioria das vezes, ela só é tolerada se ocupa o lugar de flerte ou casinho extraconjugal. Nunca se pode assumi-la como única, a escolhida de uma vida. O discurso do sucesso sempre engole o interesse genuíno de caminhar por outras estradas. Há que se pagar com a carne o desejo de ser livre. A força para repelir as escolhas ditas não tradicionais é tão medonha que mesmo aqueles que rompem a bolha custam a responder sem constrangimento: sou atriz, músico, escritor, bailarino, escritor, artista. 

O sentimento parece ser de eterna confissão de um crime que espera o perdão. Poucos falam disso abertamente, mas todos os envolvidos já experimentaram, em algum nível, a insegurança, a desvalorização, o bullying, a opressão social por nomear-se artista. Mas, no momento em que a atriz Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro, e sentimos o orgulho de sermos brasileiros, feito mágica surge a valorização da arte, somos unânimes em reconhecer sua competência, seu profissionalismo e o alcance do tão famigerado sucesso.

A dissonância não reside somente aí. Mesmo entre os que agora aplaudem, estão os que gritam críticas à Lei Rouanet. Hoje, com a premiação internacional, não tem um brasileiro que não se sinta representado diante do mundo, com honrarias, pela querida atriz e toda a equipe responsável pela produção, execução e divulgação do filme. Contudo, quantos de nós se sente pronto para incentivar, apoiar a prole na decisão de profissionalizar-se no campo artístico? 

Um estudo realizado pela OMS e pela Frontier Economics, publicado recentemente no The Guardian, comprovou que consumir arte e cultura traz vários benefícios à saúde. Entre eles: alivia a dor, depressão e dependência de remédios. Cada um de nós, na vivência miúda da própria existência, valida essa comprovação científica quando ligamos o rádio para suportar o trânsito, passamos horas de prazer assistindo séries, novelas, vibramos num show, vamos ao cinema, teatro, museus. Dançamos e cantamos nos dias de alegria. Quem não tem memória de ter se encontrado com seus afetos num romance ou poema? No entanto, insistimos na hipocrisia de desmerecer a escolha pela arte como profissão. Por quê? 

Por sorte a danada é corajosa, inquieta, sedutora e arteira. Queiramos ou não. 

Obrigada, Fernanda, Selton, Walter e todos os envolvidos nessa grandiosa conquista, não só por trazer o prêmio e nos vestir de importância aos olhos do mundo, mas pela representatividade que vocês sustentam para tantos brasileiros que resguardam em seu íntimo o desejo de dizer: quero viver da arte. 

O que seria de nós se não fosse essa janela imensa, aberta para um céu azul?

É da persistência dos que lutam por ela que extraímos o elixir para as dores do existir. 

Salve a arte e todas as pessoas, iniciativas, projetos e ações que a valorize, enalteça e fortaleça. 

Ela é perseguida por apontar com dedos bem desenhados o fracasso intrínseco da monetarização dos desejos. Em retaliação, o discurso normativo tenta lhe agregar desprestígio barateando seu valor. Não nos enganemos. Precisamos desesperadamente de ARte para suportar o cotidiano. Paguemos por isso!

E, diante da dúvida sobre a arte como escolha, que o desejo genuíno que habita cada um possa responder: eu ainda estou aqui.

Comentários

Anônimo disse…
Sensacional! Que texto gostoso de ler. Me senti representada no abraço dado.
Anônimo disse…
Viva a Arte! Parabéns Soraia por viver esse sonho!❤️❤️
Anônimo disse…
É isso, é disso que precisamos , vale a pena viver, bravo!
Jander Minesso disse…
Pois é, Soraya: essa coisa de conciliar paixão, hobby e dinheiro, além de complicada, tem muitos desdobramentos. Não tenho dúvida que a conquista da Fernanda Torres deve ser celebrada, mas no cotidiano esse equilíbrio entre vocação e produção é um misto de balé e luta diários. Também penso que é nesse constante andar na corda bamba que tantos acabam desistindo. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, levantes como o do seu texto são necessários.
Ana Raja disse…
Belíssimo e necessário texto!
Pois é. A corda sempre é bamba. Mas, como não caminhar?
Zoraya Cesar disse…
Soraya tocou num ponto sensível. Queremos trabalhar a nossa arte. Mas precisamos colocar pão na mesa. E aí?
Zoraya, concordo. É difícil. Mas temos colocado o pão e ingerido antidepressivos.
Mário Baggio disse…
Tema muito bem analisado e argumentado. Às vezes somos uma gente muito esquisita, misturamos tudo. Como não celebrar a conquista de Fernanda Torres? Há aqueles que não pensam assim. Paciência. Parabéns, Soraya.
Soraya Jordão disse…
Obrigada, Baggio. como dizia Renato Russo "festa estranha com gente esquisita, eu não tô legal"
Albir disse…
Muito bom, Soraya!
A arte nos permite saber que os humanos estamos, estivemos e estaremos aqui.

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