A CHUVA E O MAR >> Sergio Geia


 

Eu acordei. Acordei e pela primeira vez depois de dias, silêncio. Um perfume novo no travesseiro. Respirei. Respirei fundo. 
 
Embora acordado, os olhos não queriam abrir. Não lutei. Enfiei a cabeça no travesseiro e esperei o tempo deles, tudo no seu tempo — escutei uma voz, eu sempre a escuto —, sem pressa, já pensando num navio singrando o mar liso e azul, uns olhos verdes. 
 
Levantei. Diante do silêncio, fui me vestir, sem ao menos dar uma espiada na janela. O calção preto, a camisa marrom, tênis. Esguichei o repelente na perna e fui à sacada fazer alongamento. Depois de semanas de absoluta inércia, eu retomava as minhas atividades físicas. Foi quando abri a porta e vi. Embora silenciosa, ela ainda persistia, pingando sobre lajes e telhados, o asfalto molhado. 
 
E ela deve ter me ouvido falar em silêncio, ou quem cuida dela. Ele foi se esvaindo diante da nova realidade que eu via. Céu escuro, a paisagem aos poucos se transformando, ganhando novos tons, tudo ficando embaçado. Sentei-me resignado na cadeira úmida, estiquei a perna apoiando o pé na mureta. Os pingos foram engrossando, alguns pulando sobre a minha perna. 
 
Em segundos precisei dar o fora. Vento. Raios. Fechei a porta, a água batendo no vidro. Sem atividade física, fui tomar banho, já planejando a manhã: buscar resultados de exames na Plani, no Sabin, marcar teste físico depois de quatro cancelamentos. 
 
Agora estou sentado à minha mesa de trabalho. São 8h35min. Já tomei café. Aguardo o relógio marcar 9h pra sair. Nesta hora em que escrevo, a chuva continua forte. Ontem foi assim. A impressão é que vai o dia inteiro, como em Ubatuba, naqueles dias... 
 
Não há silêncio. Há uma música suave saindo da vitrola, um trompete, a playlist que uso para escrever. Ouço Chet Baker, em These Foolish Things. Há uma fumaça de baunilha subindo pela caixa preta do incensário. Meu pensamento viaja, ele viaja todas as horas. Está de novo a bordo de um navio — a imagem do navio me acompanha esses dias todos —, nuns olhos verdes... 
 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Que bonita, essa costura que você fez entre o quase dito e o cotidiano. Essa melancolia escondida entre as palavras ficou linda.
Anônimo disse…
A cada crônica acompanho seu pensamento e me vejo dentro da crônica . Como se fosse comigo. Ou eu escrevendo a crônica. Eu entro dentro de seu pensam
ento e la vou eu advinhando seus pensamentos. Que audáci
a minha né Sergio . Mas aconteceu. Adoro suas crônica.Viajo nelas
Ana Raja disse…
E essa viagem faz com que você escreva coisas lindas!
Carla Dias disse…
Gosto muito de quando você viaja para dentro olhando para fora.
Albir disse…
A imagem do navio não tem me acompanhado, mas eu pego carona no seu barco. E viajo.
sergio geia disse…
É uma viagem apaixonante.

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