O PRIMEIRO >> Carla Dias


Mudou o armário de ambiente, estava atrapalhando o caminho da sala até o quarto. Mudou a camiseta quando se deu conta de que esgotara a cota de uso do mesmo figurino nas fotos, não por vaidade, mas para colaborar com a memória, porque, às vezes, ao demorar o olhar nelas, parecia estar sempre no mesmo lugar.

E sobre o lugar, não conhece muitos, não se perde nos pensamentos desbravadores de rumos; rendeu-se ao permanecer. Recolheu-se no reconhecimento das ruas do bairro, das calçadas que levam às avenidas alargadas pela necessidade de espaço para acomodar excessos.

Mudou o jeito de lidar com as pessoas. Ajeitou o sorriso na forma, reconheceu-se no desenho certo para finalizar o início, antes de ele completar o primeiro fôlego. Não tem talento para inícios, eles sempre lhe escapam sem deixar endereço ou interesse.

O primeiro é um desestabilizador. Suas mãos suam, as pernas bambeiam, a vontade é de se esconder nos compromissos que viveriam bem sem o atrevimento dele. Tenta ignorá-lo, dispensando planos, controlando sua cadência, verbalizando a incapacidade de o primeiro ser eternizado pelas promessas que inspira, que são acuadas na nascente da sua chegada.

No primeiro passado, prometeu não mais fazer listas de desejos, apegar-se ao delírio de que é começo o que nem terá chance de ser. Decidiu que, no próximo, se comportaria diferente, almejando mudanças não patrocinadas pelo delírio de um primeiro que mais parecia repetição. Mas virou em uma rua da qual não sabia o nome, desconheceu direção, percebeu-se na fragilidade do provável. Escapou-lhe um sorriso desprendido de medida, ousando provocar outros. 

Pensou em mudanças fundamentais, inícios necessários, lugares importantes. Respirou fundo, reconheceu, mais uma vez, a vitória dele. Enquanto prometia que durante todos os outros dias se dedicaria a domar o frenesi do próximo primeiro dia do ano, mudou o disco, dançou pela sala, bebeu o vinho prometido para ocasião especial – que nunca chegava – e gritou, em coro com os desconhecidos da cidade, “Feliz Ano Novo!”. 


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Feliz ano novo ou naõ, esse texto nao engana. Mais uma ode à solidão que só D. Carla Dias sabe fazer. Ainda bem q nao li no domingo à tarde. Pq é emocionante, sempre.
Soraya Jordão disse…
que bom que pode ser assim.
Albir disse…
Ano que vem eu me controlo, mas agora vamos que vai começar!

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