AS NUVENS >> MÁRIO BAGGIO

 


Desde que o marido saiu pra nunca mais voltar, Jurema executa sem pensar muito a rotina diária: logo cedo dá um prato de caldo ralo com macarrão e um pedaço de pão duro pra cada um dos três. Pendura o menorzinho nas costas e sai pra ganhar o dia, arrumar um troco e alguma coisa pra comer na janta. Avisa pros dois maiores que não se afastem do barraco, não deem confiança pra estranho e não brinquem com os pedaços de cocô que volta e meia aparecem boiando no córrego ao lado.

 Jesus Roberto, o mais velho, e Suzy, dois anos mais nova, saem correndo para o descampado, dispostos a passarem o dia lá — a mãe não volta antes da noite. Divertem-se fazendo a brincadeira de que mais gostam: saborear as nuvens que tentam pegar com as mãozinhas sujas. As espessas são as mais desejadas porque têm requeijão e eles podem enfiar os dentes nelas com vontade. Há aquelas mais rosadas, com gosto de morango (eles nunca comeram morango, mas imaginam o gosto). Para sobremesa, algodão-doce sabor baunilha.

 Enquanto não consegue vaga na escola municipal para os dois maiores, Jurema não vê outro jeito a não ser deixá-los sozinhos em casa, fazendo sabe Deus o quê. Espera resolver logo esse assunto, pelo menos na escola eles terão o que comer além de nuvens. Lá eles não vão fazer cerimônia. E vão aprender a cantar o hino como um grito, a fazer uma ou outra conta, a escrever o nome. É certo que vão conhecer também o medo — medo de gente, medo de desagradar, medo de existir, de ser diferente, medo de que não gostem do cheiro deles, do cabelo deles, da cor deles. “Paciência.” Jurema sempre terminava os pensamentos com a palavra paciência.

 Ontem começou a temporada de chuva, e as nuvens, nessa época, ficavam ainda mais suculentas e úmidas. Jesus e Suzy se empanturraram com as mais gordas. Quando voltou para casa, à noite, Jurema os encontrou tremendo de frio, com a roupa empapada e a barriga inchada como uma bola de capotão, mas não de comida: de tormenta e raiva e fome. Olhou com pena e preocupação para os dois e pensou: “Um dia essa porra explode e aí eu quero ver. Paciência.”

 Imagem: Pixabay

 

Comentários

Soraya Jordão disse…
não há maior crueldade e injustiça do que a fome.
Jander Minesso disse…
Esse “paciência” me lembrou o “é assim mesmo” do Matadouro Cinco. E se parar pra pensar, muitas outras coisas lembraram um matadouro nesse texto.
Zoraya Cesar disse…
A tristeza dessa realidade degradante é tão espessa q não dá nem pra ver o talnraio da esperança.
Albir disse…
Suas nuvens cortam o oxigênio do leitor. Que bom!

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