Desde que o marido saiu pra nunca mais voltar, Jurema executa sem pensar
muito a rotina diária: logo cedo dá um prato de caldo ralo com macarrão e um
pedaço de pão duro pra cada um dos três. Pendura o menorzinho nas costas e sai
pra ganhar o dia, arrumar um troco e alguma coisa pra comer na janta. Avisa
pros dois maiores que não se afastem do barraco, não deem confiança pra
estranho e não brinquem com os pedaços de cocô que volta e meia aparecem
boiando no córrego ao lado.
Jesus Roberto, o mais velho, e Suzy, dois anos mais nova, saem correndo
para o descampado, dispostos a passarem o dia lá — a mãe não volta antes da
noite. Divertem-se fazendo a brincadeira de que mais gostam: saborear as nuvens
que tentam pegar com as mãozinhas sujas. As espessas são as mais desejadas
porque têm requeijão e eles podem enfiar os dentes nelas com vontade. Há
aquelas mais rosadas, com gosto de morango (eles nunca comeram morango, mas
imaginam o gosto). Para sobremesa, algodão-doce sabor baunilha.
Enquanto não consegue vaga na escola municipal para os dois maiores,
Jurema não vê outro jeito a não ser deixá-los sozinhos em casa, fazendo sabe
Deus o quê. Espera resolver logo esse assunto, pelo menos na escola eles terão
o que comer além de nuvens. Lá eles não vão fazer cerimônia. E vão aprender a
cantar o hino como um grito, a fazer uma ou outra conta, a escrever o nome. É
certo que vão conhecer também o medo — medo de gente, medo de desagradar, medo
de existir, de ser diferente, medo de que não gostem do cheiro deles, do cabelo
deles, da cor deles. “Paciência.” Jurema sempre terminava os pensamentos com a
palavra paciência.
Ontem começou a temporada de chuva, e as nuvens, nessa época, ficavam
ainda mais suculentas e úmidas. Jesus e Suzy se empanturraram com as mais
gordas. Quando voltou para casa, à noite, Jurema os encontrou tremendo de frio,
com a roupa empapada e a barriga inchada como uma bola de capotão, mas não de
comida: de tormenta e raiva e fome. Olhou com pena e preocupação para os dois e
pensou: “Um dia essa porra explode e aí eu quero ver. Paciência.”
Imagem: Pixabay
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