ESPERA >> JANDER MINESSO
Estava com dificuldade para enxergar de perto e achei melhor consultar um oftalmologista. A consulta era às dez e quarenta da manhã. Pelo sim, pelo não, às dez em ponto já estava no saguão do prédio onde ficava o consultório, diante do recepcionista.
– Primeira vez aqui, né? O senhor me empresta um documento?
Emprestei. Depois, deixei o rapaz tirar minha foto com a câmera digital. E quando, ainda em posse da minha carteira de motorista, ele perguntou como escrevia meu nome, soletrei-o com a calma de Sidarta. Mas depois de devolver o documento, o jovem pareceu entrar num torpor induzido pela tela do computador. O transe durou tempo suficiente para duas pessoas serem cadastradas no guichê ao lado.
– Aconteceu alguma coisa, amigo?
– Oi? Ah, o senhor já pode entrar. A câmera na catraca faz a liberação por reconhecimento facial.
Fiquei surpreso com a modernidade da coisa, mas o espanto durou pouco. Encarei aquele olho eletrônico de todas as maneiras possíveis: primeiro sério; depois plácido; depois ainda com desdém; e, no final, sem muita paciência. A resposta era sempre a mesma: usuário não reconhecido.
– Parceiro, a câmera não está me reconhecendo aqui.
O recepcionista olhou para mim. Procurou alguma coisa na tela do computador. Voltou a olhar para mim e de novo para o monitor. Foi quando notei um discreto tremor em sua face, do tipo que só nos acomete quando percebemos alguma cagada feita por nós. Ato contínuo, ouvi o clique do mouse e o rapaz escancarou um sorriso amarelo.
– Faltou concluir o cadastro. Agora vai funcionar.
Passei pela catraca. Poucos passos adiante, o corredor fazia uma curva e terminava num saguão estreito com quatro elevadores. O lugar estava vazio. Apertei o botão de subir e logo ouvi o sininho da chegada. Só que a porta da esperança se abriu e revelou a mais dantesca das cenas corporativas: uma legião de pessoas em roupa de escritório, todas emergindo do estacionamento do subsolo. Fiz menção de entrar e o bigodudo próximo à porta colocou uma pastinha de couro marrom entre ele e eu. Entendi o recado.
– Vou no próximo.
O próximo também estava lotado, assim como o seguinte. Já sentindo uma certa cãibra na mandíbula, apertei pela quarta vez o botão de “sobe”. Uma senhorinha fofa, com seus oitenta anos, parou ao meu lado e, tomada por grande incerteza, encarou os dois botões do painel dos elevadores. Um deles tinha uma seta para cima e uma luz acesa. O outro apontava para baixo e não emitia luz alguma. Naquela hora, eu sabia o que iria acontecer. Você, leitor, também sabe. E é claro que aconteceu. Não me contive e precisei perguntar:
– A senhora vai descer?
– Ai. Esse desce, né?
Velhinhos são criaturas fofas, nosso reflexo amanhã e enciclopédias vivas da História. Precisamos respeitá-los. Por outro lado, minha terapeuta disse que não posso evitar sentir as coisas; posso apenas decidir o que fazer com as coisas que sinto. Por isso, engoli o que estava sentindo junto com um pouquinho de suco gástrico e devolvi um sorriso para a senhora fofa. O elevador que descia parou no térreo e ela foi entrando. Uma das pessoas lá dentro deu o alerta:
– Vai descer, senhora.
– Ai. Então, não.
Logo que ela se postou ao meu lado outra vez, um temporal começou a desabar na Paulista. O barulho quase encobriu mais um sininho, anunciando um abençoado elevador que subiria vazio desde o térreo. Entramos, a velhinha fofa e eu. Apertei o décimo. Ela escrutinizava o painel.
– Ai. Qual será que é o m…
– Oftalmo? – perguntei.
– Como você sabe?
– É no décimo.
– Eu tinha consulta às dez, mas acabei atrasando um pouquinho…
Acho que a luz do elevador deu uma piscada nessa hora. Mas enfim, subimos. Abri a porta do consultório para a senhora e aguardamos um tempo na recepção: ela, o toró e eu. Sons de descargas sanitárias e elétricas se misturaram e, então, a recepcionista apontou no corredor.
– Bom dia! Quem chegou primeiro?
– Eu tinha uma consulta às dez, mas acabei atrasando um pouquinho…
A moça olhou para mim e eu só assenti. Enquanto a senhora fazia o cadastro, desabei no sofá e peguei o celular para me distrair. Não consigo precisar quanto tempo levou o processo, mas no instante em que ela encontrou o token do plano de saúde no aplicativo, eu descobri que existe um botão no fim da home page do UOL onde você pode acessar as erratas de todas as matérias mais recentes do site. Pouco depois, a velhinha querida veio para o sofá e, já com o meu token do plano de saúde na ponta da língua, me sentei diante da recepcionista, que clicava sem parar, olhos fixos no monitor.
– O sistema está lento hoje.
Olhei para o relógio. Dez e quarenta e três. Olhei também para a idosa e, então, para a recepcionista.
– Pela idade, ela tem preferência, senhor.
– Minha consulta era às dez, mas acabei atrasando um pouq…
Uma pancada de arrebentar os tímpanos rasgou os céus, interrompendo a fala da idosa e quase arrancando minha alma do corpo. Depois, tudo ficou escuro.
– Ai. Acho que caiu a força.
Resumindo: se alguém tiver uma indicação de oftalmologista que atende em casa térrea com gerador próprio, deixa aqui nos comentários, por favor.
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Comentários
Sempre Muito bom te ler. Adoro esses finais.
Repito, já aguardando seu livro de estreia.