A VOVOZINHA II >> Albir José Inácio da Silva
Tidinho era na verdade Aristides
e nem mesmo ele sabia o porquê do diminutivo. Tinha mais de dois metros, cento
e muitos quilos e uma manopla que conseguia segurar dois presos de cada vez.
Vinte anos de polícia, salário
ruim, muito trabalho, mas ele até que gostava. Tentaram lhe dar outras funções,
mas ele ficava bem era na carceragem. Gostava dos rapazes. “Dava conselhos para
os que ouviam e corretivos para os que precisavam” – dizia com orgulho. Até os
presos concordavam que ele distribuía justiça lá do seu jeito.
Isso não evitava que de vez em
quando inventassem de tirá-lo do xadrez. Foi o que aconteceu hoje: muita gente
de folga, o delegado mandou que ele acompanhasse a equipe a um bingo
clandestino. O cassino existia de fato, mas não havia viva alma no lugar, apesar
das máquinas ligadas e até cigarros acesos.
A operação deve ter vazado.
Tidinho fez cara de contrariado como os demais, mas ficou aliviado. Era só
recolher as máquinas pro depósito e voltar para a tranquilidade de sua
carceragem. Mas ouviu-se um estampido.
De arma em punho todos se
arrastaram até o fundo do salão, de onde veio o barulho. Atrás de uma máquina
estava a vovozinha, com roupa de festa e muita maquiagem, tentando pegar a
bengala que caiu no assoalho e provocou aquele barulho.
- Vovó, o que a senhora está
fazendo aqui? – perguntou um detetive.
- Estou ganhando, você não está
vendo?
- Vovó, este jogo é proibido, o
lugar vai ser fechado e a senhora vai ser presa. Entendeu?
- Ora, vocês não têm vergonha,
não? Vão prender os bandidos e deixem em paz as senhoras no seu momento de
lazer!
Tidinho não estava gostando nada.
Menos ainda quando falaram, olhando pra ele, que era flagrante, tinha que prender.
- Recolhe, Tidinho!
Ele argumentou: por que levar uma
velhinha pra delegacia? Os donos já fugiram, era confiscar o dinheiro, as
máquinas e ir embora. Mas o chefe da operação estava inflexível: ela tinha de
ir pra delegacia, talvez identificar os responsáveis, explicar a quanto tempo a
casa funciona, essas coisas.
Tidinho, que não era de muitas
palavras, caprichou. Disse que se ela não os entendia ali não ia ser diferente
na delegacia, que não tinham onde colocá-la, que ela podia ter um piripaque e
ainda seriam responsabilizados. Deu resultado.
- Vovó, a gente vai deixar a
senhora ir embora. Mas vê se não entra mais nesses lugares que a senhora acaba
enrascada, entendeu?
- Não! Eu não saio daqui a essa
hora não. Não posso andar de noite por causa das vistas. Eu só vou pra casa de
manhã. E eu ainda quero saber quem é que vai me pagar. Não estão vendo que eu
ganhei?!
- Tidinho, recolhe! –
impacientou-se o inspetor, apontando as viaturas.
Em poucos minutos a delegacia
virou um caos e a vida de Aristides também. Já tinha saído e voltado da rua
quatro vezes: comprou água, que trocou porque ela só bebia com gás; comprou
biscoito, que não servia por causa da marca ou do sabor. Por último comprou
café, mas ela não queria copo plástico. Foi sorte o delegado ter uma xícara
pintada a mão por sua mãezinha falecida. Então ela sossegou por segundos.
Mas logo recomeçou em voz alta:
se não tinham crimes a combater, tanto bandido nas ruas, cadê o delegado que
não chega, ia ligar pra corregedoria. Não satisfeita, começou a bater com a
bengala na mesa. Até que acertou o lado do pires, que alavancou a xícara e
jogou a dois metros de altura.
O delegado entrou quando a sua
preciosidade se espatifava no chão. Ele ficou um tempo olhando os cacos, mal
respirando, até que conseguiu falar:
- Tidinho, recolhe!
Pela segunda vez hoje, Tidinho
teve de argumentar, o que lhe era penoso. Não gostava de gente porque gente
falava demais. Gostava ainda menos de crianças porque elas falam ainda mais.
Uma vez quiseram transferi-lo para a Delegacia de Proteção à Criança e ele
implorou para não ir. Grande e desajeitado, não sabia lidar com crianças. Ainda
mais aquelas, rebeldes, malcriadas, em quem ele não poderia nem encostar a mão.
A única coisa frágil que amava era sua mãezinha, de setenta anos, que ele
tratava como um passarinho. E foi pensando nela que pediu:
- Doutor, a gente não pode botar
essa velhinha naquela umidade, vai que ela morre, como é que a gente fica? Vai
dar jornal, corregedoria, televisão, o diabo a quatro. Deixa eu levar ela pra
casa. Ela não sabe nada, não entende nada, não vai esclarecer nada mesmo. Vamos
esquecer tudo isso, inclusive, com todo respeito, a xícara.
De volta da missão, Aristides
estava de novo em frente ao delegado, trêmulo e pedindo uma licença. O doutor
sabia que ele nem gostava de férias, mas precisava descansar. Todo mundo viu a
paciência com que ele cuidou daquela infratora. Ainda bem que o doutor é homem
compreensivo ou podia pensar que ele estava prevaricando. Depois, por causa da
escuridão, levou-a pelo braço até em casa. E quando esperava um boa-noite, um
Deus-te-abençoe-meu-filho, a idosa perguntou, antes de bater a porta:
- Você tem outras atribuições na
delegacia ou o seu trabalho é só maltratar velhinhas?
Obs: Este texto integra o
Programa Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 18 de abril de 2011.
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