UMA ESTRANHA FAMILIARIDADE << SORAYA JORDÃO
Faz tempo que eu ouço dizer que nesta vida ninguém esbarra com ninguém por acaso. Há sempre um motivo oculto por trás de cada encontro, seja ele duradouro ou fortuito, amável ou não. Uma espécie de acerto de contas ou “jogue de novo” que não cansa de se repetir. Confesso que nunca me ocupei muito com essa questão, mas de vez em quando, me pego pensando: existe um pré-destino ou uma pré-história que força o encontro para uma quitação de débitos?
Pensar sob essa perspectiva me incomoda um pouco, traz a sensação de que minha desatenção e impulsividade afeta a contabilidade do destino e me torna uma devedora inveterada, ainda que me esforce para seguir a máxima: devo, não nego, pago quando puder.
Quando me aprofundo na tese, outra dúvida surge: se acerto as contas com alguém, aquela pessoa se vai para sempre? Ou terei a chance de reencontrá-la para novos erros e acertos?
Não tenho resposta para nada disso, mas posso afirmar que Enzo, o menino que encontrei, por dez minutos, no Mc Donald’s de Cape Town era íntimo desde sempre. E dado o curto tempo e a intensidade do nosso encontro, sinto que a motivação não era uma dívida, mas o direito a um reencontro pela saudade espiritual através dos tempos.
Eu, distraída com meu lanche, mal percebi o momento em que ele se aproximou de mim. Fiz uma gracinha, dei um sorriso, mas ele insistiu em se fazer notar. Me apresentou seus brinquedos, uma baleia e um crocodilo de plástico, aguardando minha participação na brincadeira.
Nesse instante, me dei conta que a voz alterada e agressiva que chamava atenção de todos na lanchonete era da sua mãe ao celular. Ela dizia aos gritos que se o homem continuasse a persegui-la, ela iria à polícia.
Enzo apontou o crocodilo e disse papai. Cuidado, ele morde.
Ficamos ali, eu e ele, brincando de criar possibilidades, saídas para aquele horror. Criamos um rio para o crocodilo. Uma casinha para a baleia. Um cobertor feito de guardanapo para protegê-los do frio. Enzo me abraçou. Ficamos assim por um minuto de eternidade.
Antes de partir, tive tempo de dizer:
— Enzo, jamais esqueça que você é um menino bom, inteligente, amigo e muito amado.
Eu te amo!
— Eu te amo também. Quer jogar bola?
Parcas são as chances de nos reencontrarmos novamente nessa vida. Mas Enzo floresce em mim de uma forma que não sei explicar. Não havia dívida, só encontro e entrega. Se houve débito, eu e ele estávamos profundamente dispostos a perdoar.
Foram raros minutos de comunhão e (re)encontro.
Tomara que minhas palavras ressoem ao longo dos anos como presença na vida dele.
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