FELIZ, GELADA E EM CIMA DA MESA >>>Nádia Coldebella



Era um corredor largo, extenso e branco. As luzes de LED, bem distribuídas, refletiam nos azulejos, e o homem parado em frente à porta fechada da sala 13, até então choroso, fez uma pausa. Se ele não tivesse certeza de estar vivo, no planeta Terra, diria que aquele corredor era uma ponte para o além.

Ele observou pela vidraça da porta que as luzes de LED traziam versatilidade, durabilidade e modernidade ao ambiente, mas não conseguiam aquecer o aço frio das mesas, que, resplandecentes sob a iluminação, não provocariam qualquer sensação nas peles nuas que sobre elas se estendessem. As paredes que contornavam a sala eram banhadas pela frieza do ar-condicionado. Pareciam esconder um segredo, mas apenas sussurravam o testemunho da fragilidade humana. Preso  a estes pensamentos, ele foi tomado por uma enorme comoção: respirou fundo e logo trancou a respiração, pois tudo o que sentiu foi o cheiro nauseante — ainda que profissional — de desinfetante e formol.

Engoliu seco e moveu-se inquieto. O silêncio era um limbo, cortado apenas pelo zumbido incessante dos refrigeradores industriais e das serras abafadas por camadas de portas e paredes. Ele ouviu o “plec plec” dos sapatos de um homem muito alto e forte, todo vestido de branco, com máscara, luvas e touca na cabeça. O homem da porta, também alto, sentiu-se franzino e assustado perto daquela figura, que parecia uma entidade, meio médico, meio açougueiro. Quando a suposta entidade chegou perto, o homem da porta leu "Valêncio Cordeiro, técnico em autópsia" no crachá e não pôde deixar de achar graça, imaginando que tipo de mansidão poderia haver em um homem como aquele.

Valêncio conhecia o impacto que sua imagem exercia nas pessoas, ainda mais naquelas que esperavam na porta. Ele não se importou muito, porque sabia que, em questão de segundos, o homem sentiria culpa de ter se permitido sorrir e começaria a lamentar novamente. E assim aconteceu. Logo, a tristeza estampou-se na face do coitado e seus olhos se encheram de água.

— Bom dia, Dr. Valêncio. Meu nome é Otávio. Vim por causa de mamãe.

Valêncio soubera logo cedo que, na noite anterior, chegara uma mulher idosa:

— É uma madame velha, mas muito conservada — dissera o outro técnico para Valêncio, segurando o riso por causa do trocadilho e lembrando que o filho e a nora também estavam por ali. — O filho não pára de chorar.

O técnico da noite se sentira incomodado. Por causa do choro do filho da mamãe, ele procrastinou. Como já passara da meia-noite, colocara a madame na gaveta e deixara a situação para Valêncio resolver no dia seguinte, explicando para a nora, que não derramara uma lágrima, que esse era o protocolo.

Valêncio observou com cuidado sutil o homem parado na porta. Era um homem branco, em torno dos 50 anos, com aproximadamente um metro e oitenta, pernas finas e braços compridos. No topo da cabeça, ele exibia um cabelo loiro avermelhado, liso, ensebado e rareando. Sua face era também avermelhada, com aspecto encardido, de quem já sofria os efeitos do sol. Os olhos eram rasgados, de um verde apagado, emoldurados por óculos de lentes grossas e armação marrom. O nariz era batatudo e a boca, de lábios volumosos, mas moles, carregava dentes amarelados pelo excesso de coca-cola e café. Vestia uma camisa branca e um terno marrom surrado. As calças estavam apertadas logo abaixo da barriga proeminente, formando uma espécie de drapeado. Ele apresentava um aspecto cansado e parecia ter saído direto do trabalho.

A nora encontrava-se sentada em uma das cadeiras do corredor. Usava um vestido preto justo. Ela tinha um corpo bem cuidado e, naquela roupa, estava sofisticada e elegante. Tinha cabelos castanhos, amarrados discretamente em um rabo de cavalo. Era bem mais jovem do que o homem e apresentava um semblante pacífico, de pura realização, como se tivesse encontrado o sentido da vida. Ela se aproximou quando viu que Valêncio a observava, se posicionando ligeiramente atrás do marido. O homem recomeçou a falar.

— Mamãe era uma mulher muito boa — as lágrimas caíam dos olhos de Otávio. O técnico em autópsia olhou furtivamente para a nora e leu seus lábios: uma megera.

— Sinto por sua perda — Valêncio era muito educado e gentil, mesmo quando ouviu a nora sussurrando um “já vai tarde”, que ele fingiu não perceber.

— Sabe, doutor — o técnico não era doutor, mas não reclamou — mamãe era de bem com a vida — a nora revirou os olhos — ela cuidava da gente — agora uma cara zangada — Principalmente de mim — e um aceno irônico com a cabeça.

Era uma situação delicada, pensou Valêncio, observando Otávio chorando abertamente.

— Eu não entendo o que aconteceu, doutor. Mamãe se cuidava — uma fungada — era vaidosa, elegante, se vestia muito bem —  outra fungada do filho da mamãe — sempre com roupas caras — e Valêncio olhou para a nora, que, de tão concordante, parecia um daqueles adoráveis enfeites de carro em formato de cachorro que balançavam a cabeça ao ritmo dos movimentos do veículo, muito populares nos anos 80 e que ainda hoje despertam nostalgia em muita gente — Ela fez plástica, fez lipo, ajeitou os peitos. 

A imagem que se formou na cabeça de Valêncio não foi nada romântica. Ele imaginou o esqueleto da mulher no túmulo com as duas próteses de silicone, uma de cada lado do corpo. Porém manteve-se impassível enquanto Otávio limpava o nariz com a manga do casaco, para depois continuar a falar.

— Ela parecia mais jovem do que eu, doutor. — ele sorriu — Sempre achavam que eu era o marido dela — e a esposa fechou a cara — Faz uns três meses que ela aplicou botox, ficou com os lábios grossos, toda rejuvenescida — ele estava orgulhoso da mamãe — Só que o médico disse pra ela se cuidar, que não era mais jovem, que ela tinha problema no coração.

— Tinha mesmo - a nora abrira a boca pela primeira vez e técnico sentiu o sarcasmo cortando a carne.

—  Ela morreu na balada, doutor —  Valêncio arqueou levemente a sobrancelha, sem perder a postura neutra — Na rave —  Inacreditável, pensou, enquanto via a nora cobrir o sorriso com a mão.

Um Valêncio levemente abismado, mas muito profissional, resolveu não prorrogar o assunto. Precisava preparar o corpo para a autópsia. Explicou rapidamente ao casal que um deles deveria entrar e identificar o corpo. A nora deu um passo para trás, deixando para o marido a incumbência. 

Os dois entraram na sala gelada. Otávio parecia horrorizado e estremecido, tal era a tensão que o tomava. Valêncio lembrou-se de que era ele quem estava acostumado ao cheiro e ao contexto, não os outros. Procurou ambientar o homem da melhor forma, se é que isso era possível. Explicou detalhadamente os próximos passos, mas Otávio parecia não absorver nenhuma palavra. O técnico então explicou da forma bem sucinta, como se falasse com uma criança:

- Eu vou abrir a gaveta. Depois vou descobrir o corpo. Seu trabalho é dizer quem está na gaveta. - Otávio fez que sim com a cabeça.

Valêncio abriu a gaveta e aguardou alguns segundos, para Otávio se adaptar. Ele havia aprendido, nesses anos todos, que estes segundos eram cruciais para o melhor manejo da situação. Ele então descobriu o corpo. Otávio olhava e ele também olhou. Depois ficou confuso: uma mulher, pálida, cerosa, igualzinha a Otávio, só que maquiada, estava sem nenhuma ruga e com um enorme sorriso no rosto. De orelha a orelha. 

O cérebro treinado de Valêncio também precisou de um tempo para reiniciar e entender a situação. É que, durante a noite, a mulher desidratara, mas as áreas em que o botox fora aplicado permaneciam inabaláveis. Quando o rosto murchou, a pele foi esticada, expondo os dentes. O resultado era esse. Um sorriso grotesco, praticamente um coringa.

— Essa é a mamãe, doutor — Otávio suspirou. — Olha como está em paz! — Ele a olhava com carinho, enquanto um Valêncio, agora perturbado pelo choque da modernidade, murmurava um mantra para manter a gargalhada sob controle.






Comentários

Zoraya Cesar disse…
HAHAHAHAHAHA, Countess, sua descrição de aparência está primorosa. Eu vi os personagens claramente, como se estivessem na minha frente. Amei as caras e bocas da nora. Agora, que final! E que lição de vida hein?
Jander Minesso disse…
Delícia de mistura, Nádia! É um encontro do Nelson Rodrigues com o Edgar Allan Poe. As descrições no segundo parágrafo até me embrulharam um pouco o estômago também. E até senti um pouco de pena do Otávio, juro.
Soraya Jordão disse…
vou usar a dica do mantra para gargalhadas indevidas.
Zoraya Cesar disse…
Countess, agora comentando um pouco melhor. Garota, reli com prazer sua história. O título já dizia tudo, mas a gente nao escutou. Os personagens, mesmo os periféricos, como a nora, foram primorosamente construídos, nada ficou ao acaso. Aliás, eu VI as caras e bocas da nora. Fiquei com pena dela. Pq se livrou da sogra, mas está amarrada com um estrupício como o Otávio, que sempre viverá à sombra da mãe. Agora, morrer na balada foi maravilhoso. Enquanto a mãe se divertia, o filho fenecia. E fica o grande espanto a nos assombrar depois de termos lido essa história (ri muito de novo): depois de tantas vitórias e risadas, tristezas e lágrimas, botox e colágenos, ou nada e nada, como será nossa face depois de desidratada? Provocaremos horror? Sorrisos leves? Espanto? Alívio?
Albir disse…
Filhinho da mamãe é outra coisa, enxergou paz num sorriso grotesco. Se o botox não embelezou a madame, confortou seu rebento mimado.
Você está cada dia melhor, condessa, até quando trata de medicina legal.

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