Minha casa (mamãe) e Minha casa (papai) >> Alfonsina Salomão

 



Faz um mês que meus filhos vivem em duas casas. Fiquei meses buscando um apartamento, aluguei o melhor que consegui, decorei e arrumei pensando neles, ainda que a metade do tempo não estejam aqui. Mas como mãe é um bicho culpado, viva a igreja católica e a sociedade patriarcal, no fundo eu ainda me sinto mal por ter dissolvido o núcleo familiar, papai, mamãe, filho e filha todos juntos sob o mesmo teto.  Outro dia minha filha me disse: não somos mais uma familinha, agora somos meia familinha. Doeu. Senti pena dela, vontade de explicar-lhe coisas de adultos, vontade de me defender, de gritar que estamos melhor assim. Me contentei em responder que ainda somos uma família, ao que ela contestou com um lacônico e insolente: “é isso”, coerente com sua idade e temperamento. Doeu não só por ela, mas também porque esta ilusão da família perfeita, que claro não era perfeita, foi o que me fez apertar os dentes, como eles dizem na França, e, num gesto auto sacrificial estúpido e imemorial, porque minhas antepassadas também fizeram isso, fui levando o que já não fazia sentido ser levado há muito tempo.

 

Este ano, quando encontrei uma pessoa que não via há oito anos e disse que estava pensando em me separar, ela respondeu: “há oito anos você esteve aqui e falou isso”. Levei um susto. Pensei bem e era verdade. Não sei se sou muito lenta, ou muito paciente, ou muito esperançosa, ou muito pouco corajosa, ou muito, muito, muito... certinha, ávida por corresponder, doida para agradar, com síndrome de boa aluna, educada em colégio de freiras e praticante de yoga. Durante estes oito anos pensei, não sem uma certa dose de narcisismo e atribuindo-me imensa importância, que dava conta de tudo. Prazer? Não, não preciso disso, transcendo meditando. Afeto? Meus filhos me dão de sobra. Atenção? Ah, esta sim, eu não cansei, ou melhor, cansei de mendigar.

 

Este longo parágrafo era para ter sido uma pequena frase introdutória à redação que minha filha escreveu na escola. O tema era “minha casa”. Ela escreveu dois textos: “Minha casa (mamãe)” e “Minha casa (papai)”. Achei a solução indecente de lúcida. Aquele tapa na cara com luvas sincero e inocente que as crianças costumam dar. As descrições foram fofas, certeiras, um bálsamo para meu coração que havia se partido um pouco mais ao ler os títulos. Nossa nova organização não corresponde ao ideal burguês das sociedades ocidentais e todos, eu, meus filhos e também o pai deles, devemos fazer o luto desta miragem. Esperei o quanto pude para dar este passo. Outro dia o ex disse, no telefone: “não suporto esta sua maneira de não ter nenhum arrependimento”. Não, de fato não tenho, sou como a Edith Piaf, “je ne regrette rien”. Não rezo mais para ser uma boa esposa. Inclusive sinto um misto de vergonha e asco de mim mesma quando lembro que fazia isso. Mas continuo pedindo para ser boa mãe. E quando está complicado, lembro do que uma amiga falou: “você pode não ser boa mãe, mas é um excelente pai”.

Comentários

Jander Minesso disse…
Não vivenciei metade do que você descreve aqui, mas imagino o inferno de lidar com as cobranças externas e internas. E pelo menos sobre a parte de querermos ser certinhos eu posso dizer: é bem ruim. Mas seu texto passa uma sensação de alguém inteira, mesmo no meio de um furacão. Foi bom de ler.
Nadia Coldebella disse…
Te digo, sem arrependimento não quer dizer sem luto. Doi bastante , os filhos acrescentam uma camada extra de complexidade. No final de tudo, vc escolhe entre continuar fazendo de conta ou enfrentar a realidade que é bem dura. A vantagem da realidade é que ela é como é, sem jogos, sem artifícios. Força aí. Estamos juntas!
Muito obrigada querida, seus comentários são quase uma sessão de terapia online, muita gratidão pela atenção e generosidade. Sim, estou entendendo que arrependimento e luto não são a mesma coisa, e aprendendo a detectar e lidar também com a culpa. E sim, a realidade é bem dura, requer coragem, mas como é bom viver inteiramente!! Beijos e valeu demais pela força!
Muito obrigada Jander pela leitura atenta e pelo comentário. Quis publicar um texto e escrevi outro, acha que estava precisando do desabafo...rs. Muito feliz por você ter apreciado a escrita e tido a impressão de que a autora está inteira (e me comunicado esta impressão). Me fez bem ;)
Zoraya Cesar disse…
A gente é criada assim mesmo, para assumir a responsabilidade, abraçar a culpa e a olhar pro lado. O que a sociedade ainda nao aprendeu é que, hoje, qd assumimos a responsabilidade, assumimos pelo nosso bem estar, pela nossa vida, e nao pelo conforto do outro; qdo abraçamos a culpa, ela se dissolve em compaixão e deixa de nos atormentar; qdo olhamos pro lado, vemos que há saídas, há portas, há outras maneiras de se viver. Vc está de total parabéns. E qto ao comentário do ex, veja bem, vc vai se arrepender de q? Teve dois filhos maravilhosos, ganhou experiência de vida, percebeu que aquela história tinha acabado e saiu fora no momento certo. Arrepender de q? Pa-ra-béns
Albir disse…
Parabéns, Alfonsina, pela coragem, determinação e sensibilidade. Mais que entendê-la, seus filhos vão se orgulhar de você.
Soraya Jordão disse…
Dói, arde, coça, inflama. Mas, sempre que penso na minha separação, me orgulho de ter sido honesta com a minha história. Sei que deixo de exemplo para meu filho, a importância de ter coragem na vida. Parabéns!

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