O TRILHEIRO - parte 2 >> Zoraya Cesar
O trilheiro - parte 1 - clique aqui
Cavalo e cavaleiro não se mexiam. O Akhal-Teke, de cansaço. O trilheiro, porque seu corpo desidratado, enregelado e faminto não aguentava mais o clima álgido e ventoso que suportara por dias incontáveis.
O que dera errado? Como foram parar naquela situação?
----
Tudo começou com o Abukassi.Uma serpente com cabeça de pássaro e dentes afiados.
Rastejava sob a areia, suave e silenciosamente. Seus botes ferozes e certeiros
arrancavam nacos profundos das presas, devoradas ainda quentes de vida. Em seu
festim, gorgolejava o sangue bebido num som tenebroso que arrepiava até as
pedras.
Difícil matá-lo na primeira tentativa, e a falha costumava
ser mortal. O melhor era escapar para um lugar íngreme ou correr por longes
quilômetros, até a maldita cobra cansar.
Sabendo que a região abrigava Abukassis, a dupla estava
atenta. Por isso conseguiram evitar o primeiro ataque, que seria, inevitavelmente,
fatal.
Por tudo saíram ilesos e conseguiram retornar à trilha
original, conhecida desde sempre.
Mas nem mesmo os caminhos já trilhados permanecem os mesmos
- a água desgasta a pedra; desertos surgem; árvores caem; flores murcham;
amores acabam. O trilheiro envelhece. A vida e a morte dançam juntas o tempo
todo, e a única coisa certa é que nada é permanente.
A trilha já não era a mesma. E o tempo gasto para
reencontrá-la cobrou seu preço em
exaustão e provisões. Teriam que encontrar uma hospedaria antes de prosseguirem
na missão.
Mas, súbita e selvagemente, a luz do dia morreu sob os
golpes de uma noite escura e ávida. Rajadas de vento uivavam, ominosas. A
temperatura caiu tão bruscamente quanto uma cabeça guilhotinada e com igual
violência. Uma tempestade de areia surgiu do inferno, envolvendo-os.
Ficar parados era a morte certa. Urgia continuar.
(A vida e a morte valsavam ao som do vento)
Um frio álgido penetrava-lhes o corpo, o próprio âmago de suas almas. E, não caída do céu, mas simplesmente surgindo, veio a neve, espessa e profusa. As estrelas mal brilhavam, desdenhando da sorte dos dois companheiros.
Depois de muito tempo, sem trilha e sem noção do que seria
dia ou noite, olhando a desolação em volta, o cavaleiro sentiu um formigamento
no estômago, e a pulsação tão forte, como se a veia quisesse saltar e
encontrar, ela mesma, o caminho de volta. Um início de desespero invadiu suas
entranhas. Sabia que estavam irremediavelmente perdidos.
A angústia e o medo o consumiam. Procurava, meio em pânico,
uma saída, uma trilha, qualquer coisa em que amarrar a esperança.
Já vira a morte de perto algumas vezes, mas nunca tivera
tanta certeza dela como agora. Sentia sua vida apagar aos poucos,
inexoravelmente. Estava apavorado. Morrer agora. Na escuridão. No frio. Na
solidão. Morrer.
O Akhal-Teke, em seu instinto, sabia que estavam mais que
perdidos. Estavam condenados. Estacou junto a uma rocha, tentando evitar o
vento de areia, tão cortante que começara a tirar pequenas lascas de suas
peles. Queria guardar suas últimas forças para alguma eventualidade. Porque a
esperança nunca abandona um Akhal-Teke.
Na lenta descida rumo ao nunca mais, o homem lembrou de uma
história contada em todas as tabernas, a do Boiadeiro dos Cerrados, um homem
bom, trilheiro de resgate excepcional, que nunca recusara ou perdera uma
missão. Numa noite como aquela, porém, já velho, saíra em socorro de uma alma
perdida e não voltara. Nem seu corpo ou de seu ginete, jamais, foram
encontrados. Uma lágrima congelou no olho do trilheiro – ele não chegaria à
velhice.
---
Um pesado cobertor foi jogado em seus ombros e um bourbon em sua boca. Entreabrindo os olhos, viu que um homem miúdo, vestido com um gibão prateado de estrelas e sóis, montado em um grande cavalo azul de crinas douradas, segurava as rédeas de seu Akhal-Teke.
Então, pensou, assim era a morte, afinal. Aconchegante,
saborosa. E vestida como um Boiadeiro. Bem-vinda, Amiga! Obrigado por acabar
com esse sofrimento. Então, a escuridão se fez.
---
Demorou a perceber a cama, o teto sobre sua cabeça, as vozes
além da parede. Estava vivo? Vivo! E seu cavalo?
Ao abrir a porta, viu-se numa taverna, cercado de aplausos,
salvas, tapas nas costas. Ainda tonto, foi ver sua montaria. Estava abrigada e
alimentada, limpa.
O trilheiro afagava a cabeçorra do bicho deitada em seu
ombro, a emocionante ligação além das palavras entre um trilheiro e seu cavalo,
incompreensível para almas comuns.
Sentado junto à lareira, um copo de cerveja na mão, olhava,
intrigado, para uma imagem gravada na parede.
Era-lhe estranhamente familiar. Perguntou ao estalajadeiro quem era.
- Ah, esse é o Boiadeiro dos Cerrados. O melhor amigo dele
fez esse aqui. Mas ele tem várias aparências, depende do artista. Vem cá, que
sorte ter encontrado o caminho depois de tanto tempo, hein? Todos acreditavam
que você tinha morrido.
Não, pensou o trilheiro, não foi sorte.
Erguendo seu copo à figura de um homem pequeno, vestido com
um gibão desenhado de estrelas e sóis, montado num cavalo azul de crinas
douradas, agradeceu silenciosamente.
Enquanto vivesse, contaria a todos que um verdadeiro
trilheiro sempre termina sua missão. Nessa ou na outra vida.
Comentários
(qualquer outra palavra que eu coloque tiraria a força do comentário em si)
Sem querer obrigar a autora a criar uma parte 3, como ficou a situação das pessoas que o protagonista iria resgatar, antes de todas aquelas intercorrências que desviaram o seu caminho?
Jander - amei seu comentário. Sem querer ser sádica, mas se vc realmente teve pesadelos, me sinto honrada.
Baggio - bom te ver aqui. Agradeço o elogio. Mas, veja bem, essa história me foi contada numa taberna no fim do mundo e acho que eu já estava meio sonolenta.
branco - 'fascínio'. tb nao digo mais nada. tentar me expressar só diminuiria o impacto q seu comentário causou.
Márcio - só vc mesmo para reparar na nota sobre o Saint-Exupéry. Fiquei emocionada. Ah, aquelas pobres almas da primeira parte foram resgatadas por outros trilheiros, nao se preocupe.
Ana Raja - obrigada!
Antonio Fernando - sem dúvida nenhuma, é vc q sempre ganha meu dia qdo leio seus comentários!
Érica - nanina, eu nao tomo chá de cogumelos. EU SOU o cogumelo.
Márcia - nao poderia ficar mais feliz e comovida. De verdade.
A todos, como semrpe, sem palavras para agradecer!
Você tem salvação, Zoraya!
Esforce-se!
Vou dormir esta semana pensando em lareira, cerveja e cobertor quentinho.
Oh, glória!
Albir - hummm, acho q vc está me provocando. Todo mundo reclamou do tratamento q o coitado do Trlilheiro sofreu e vem vc dizer q 'peguei leve'? Até nosso Jander ficou meio encafifado com o sapo carnívoro. E vc ainda diz q tenho salvação? Provocação. Depois não reclama
A vcs dois, agradeço também a leitura e o comentário!