AMANSA ARREPENDIMENTO >> Carla Dias


O dia foi um tanto estranho, mas não se rendeu ao receio de dar errado. Confirmou presença no evento, considerando a necessidade da parada básica no boteco do Sinésio para resolver a ansiedade, ao se aproximar a hora de fechar negócio tão importante, com uma caprichada dose do drinque da casa, o “amansa arrependimento”.  

Amansar arrependimento é uma arte. Conheceu uma senhora, mãe do tio do primo de um amigo, que jurava ser capaz de virar arrependimento ao avesso. Ainda era pirralho quando escutou a história pela primeira vez, nem entendia aquilo de se arrepender, e se arrependeu de tê-la conhecido, durante uma passagem relâmpago pela igreja. A mulher lhe metia medo, talvez por ele sempre imaginá-la ao avesso, as entranhas expostas, a caminhar pelas ruas do bairro. Ele a achava mais ameaçadora do que o Homem do Saco e o Chupa-cabra.

Mas nada como o tempo para matar lendas usadas por pais e mães para manter filhos em casa. Com os colegas de escola, apelidados de Menino do Saco e Chupa-cabra Mirim, ele descobriu o encanto e o absurdo da invencionice. Mais tarde, adulto enfiado em ternos e termos burocráticos, repensou a descoberta. Passou a crer ter encontrado alguns seres humanos que cabiam muito bem nas definições de algumas lendas de meter medo em crianças... e em adultos.

E o no dia mais triste de sua vida, quando se reconheceu servo de uma dessas entidades, apreciador dos prazeres oferecidos por ele, passou a noite no boteco do Sinésio. No outro dia, foi trabalhar.

Ainda pivete, quando matava tempo na casa do avô — viúvo de quase quinhentos anos de idade, de barriga salientíssima, um olho cegado por pedrada, o lábio rasgado por lâmina de origem nunca revelada, coxo de nascença —, descobriu a coleção de bonecas de porcelana da avó. Não a conheceu, nasceu um mês depois de ela se mudar para o mausoléu da família, mas entrar naquele depósito, o “quartinho proibido” do avô, trouxe a compreensão de que nem tudo merecia ser revelado. Daquele dia em diante, passou a fugir de quem tinha olhos de boneca de porcelana.

E assim ele chega ao agora. Desenlaça a gravata, arranca os sapatos, largando-os no corredor, segue direto para o quarto e se joga da cama. Uma horinha, quem sabe, nada de abuso. Um fechar de olhos para abrandar cansaço, depois um banho e estaria pronto para encarar mitos do inferno encarnados em ilustríssimos empresários e fechar um negócio que beneficiaria poucos e prejudicaria muitos.

Não conseguiu dormir, a mente em um encontro saudosista com seu passado. Apesar de ser seu dia de glória, data para ser celebrado por sua exímia capacidade de fazer acontecer o que fosse no universo frenético dos negócios, só conseguia pensar na notícia de ser o herdeiro da casa do avô, e em como se desfaria das malditas bonecas de porcelana.

Ainda bem que ainda existe o boteco do Sinésio.


Imagem: Niemals vergessen © Karl Wiener

carladias.com.br


Comentários

Francisco disse…
Botecos e sua vocação terapêutica (he he). Também acho bonecas de porcelana horripilantes. Valeu!
Soraya Jordão disse…
como diz o pagode: Gripe cura com limão, jurubeba é pra azia. Do jeito q a coisa vai, boteco do Arlindo vira drogaria. Adorei!
Jander Minesso disse…
Me identifiquei muito com a parte dos mitos do inferno. Mas gostei mesmo das coisas que você disse sem dizer.
Albir disse…
Também não gosto de bonecas de porcelana. E gostaria, mas acho que nunca vou saber o porquê

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