COMO NASCE UM CONTO? >> Sergio Geia

 


Regra geral, o conto, como gênero literário, se caracteriza por ser uma história curta (Alice Munro me derruba sempre que eu insisto nessa ideia), ficcional (Lygia também me derruba nesse quesito), tem um personagem e um conflito. Julio Cortázar, amante do boxe, dizia que no romance você vence o leitor por pontos; no conto, por nocaute. 
 
Como nasce um conto?, eu sempre me fiz essa pergunta. Andei pensando. 
 
Certa vez, Paulo Emílio Sales Gomes, voltando de Paris, onde se escondia da ditadura, contou a Lygia, sua esposa, sobre uma notícia que vira no jornal. Um sujeito, filho de pai brasileiro e mãe alemã, tinha ido para Düsseldorf lutar na guerra. Por lá se engraçou com uma moça alemã, filha de um farmacêutico, com quem se casou. A moça era bonita e tinha uma perna mecânica. Uma perna mecânica naquela época era caríssima e só heróis de guerra a possuíam. Na madrugada da noite de núpcias, enquanto a esposa dormia, o sujeito enfiou a perna debaixo do braço e fugiu. A história, verdadeira, deu origem ao conto Helga, que está no livro Antes do Baile Verde, de Lygia Fagundes Telles, Editora Companhia das Letras. O conto é extraordinário, narrado em primeira pessoa, sendo o narrador o ladrão, que na história de Lygia ficou milionário e nunca mais teve paz. 
 
Há um conto belíssimo de Giovani Martins chamado O caso da borboleta, que está no livro O sol na cabeça, Editora Companhia das Letras. O menino Breno, de 9 anos, tem fome e, na cozinha, fuça alguma coisa pra comer; sua avó cochila na sala. Ele nota que uma borboleta entra pela janela e após borboletear por mesa, armários e fogão, pula pra dentro de uma panela cheia de óleo. A cena foi presenciada por Giovani já adulto e mexeu muito com ele, levando a reflexões sobre ciclos e morte. Virou conto. 
 
O escritor ouve o que as pessoas dizem na rua. Reproduzir a fala, o tom, o ritmo, a forma teatral de se expressar, pode ser um bom começo de conto. Muitas vezes, um conto nasce de uma voz que o escritor ouviu na rua. Essa é uma prática defendida pelo escritor Marcelino Freire. Sua mãe era uma poeta. Todas as noites ela dizia: Amanhã não amanheço viva. Puro teatro, pura poesia, ele diz. 
 
Por falar em mãe, a minha, que hoje vive em outro plano, sofreu com uma doença chamada demência vascular. Ela começou a ter lapsos de memória e fazer muita confusão. Não sabia mais carregar a bateria do celular, por exemplo. Não tinha noção de como fazer, aquilo não fazia mais sentido pra ela. Houve uma vez em que ela tentou abrir a porta do carro com a chave da porta do apartamento. 
 
Eu sofri assistindo às suas confusões e mais ainda para lidar com a situação. Simultaneamente a esse processo, até como forma de lidar com os meus fantasmas, escrevi o conto A mais linda do baile, que está no livro Vocabulário de memórias ausentes, que saiu pela Editora Sinete. O conto foi inspirado em minha mãe, embora não seja uma de suas histórias. 
 
Às vezes o conto nasce de uma obsessão, de uma imagem que vemos na rua, de uma ideia, de uma voz, de uma dor. Às vezes ele é inspirado na vida real (A mais linda do baile); às vezes ele é vida real (Helga). Às vezes surge do nada, de nenhuma ideia, e se constrói sozinho, como se fosse um ser autônomo, cabendo ao escritor apenas ouvir, sentir e digitar. 
 
Um conto nasce porque tem de nascer, e não importa de onde vem, nem pra onde vai. Ele simplesmente quer viver. 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Amei a analogia do boxe. E é sempre bom lê-lo, meu amigo, inclusive para entender um pouco mais do seu processo e das suas referências.
Nadia Coldebella disse…
Porque o cara roubou a perna mecânica da moça na vida real? A minha curiosidade é genuína, mas me faz pensar agora que uma pergunta sem resposta tbm faz nascer um conto. Os meus nascem das coisas mais estranhas, mas é como vc diz, pode ser de uma brisa, mas sempre carregará um pouco do escritor consigo.
Muito bom te ler.
Gde abraço!
Ana Raja disse…
Que crônica linda, Sérgio. Você mostrou muito bem os caminhos da criação de uma história. Puro processo criativo.
Mário Baggio disse…
Sergio, os exemplos que você deu sobre como nasce um conto são ótimos. Desse sobre o roubo da perna mecânica eu não me lembrava, embora já tivesse lido o livro da Lygia. Comigo, que me considero contista, acontece mais ou menos a mesma coisa. Uma vez escrevi um conto baseado numa entrevista a que assisti no programa do Antonio Abujamra: a entrevistada era uma carpideira (só aí soube que existia essa profissão, ou ofício). O escritor tem de ser bom observador da vida, das ruas, da cidade, das pessoas, é o que penso. Muitos dos meus contos surgiram de conversas que ouvi em fila de banco (quando existiam as agências).
Mário Baggio disse…
Complementando meu comentário aí em cima: O escritor tem de ser bom observador da vida, das ruas, da cidade, das pessoas, é o que penso - e vasculhar, sempre, a memória, essa matéria-prima que sempre nos surpreende.
sergio geia disse…
Grato, meus queridos, por essa riqueza de comentários
Darci Siqueira disse…
Simplesmente sensacional! Você é sensacional! Parabéns, uma aula para nós leitores; pronto!! Entendi! Já estive dentro do seu conto!
Zoraya Cesar disse…
há várias maneiras de nascer um conto. mas a semente dele só vinga em mentes e mãos sensíveis e nervosas, que precisam dar-lhe vida. E vc, Geia, é um berço natural de crônicas do cotidiano, das pequeninas coisas. Sempre um prazer te ler.
Albir disse…
Muito bom, Sérgio! O conto nasce de qualquer coisa, de banalidades. O escritor precisa acreditar nas banalidades, o que nem sempre é fácil, já que são banalidades e por natureza não acreditáveis.

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