LEIDIDAI MÁRCIA SIXKILLER NÃO É UMA MULHER COMUM >>> Nádia Coldebella

 



À primeira vista, parecia uma mulher comum, entre 40 e 50 anos, de estatura mediana e muito magra. Os olhos grandes tinham um quê de criança desolada e desamparada. Nesse momento, estavam estalados, molhados e brilhantes. A pele ao redor deles já estava franzida pela ação do tempo. A do corpo era de um amarelo encardido, desbotado, quase cinza e sem viço. Estava na cara  e no corpo que ela não tomava sol fazia tempo. Devia ter carência de vitamina D. Os cabelos, cortados em um chanel à la anos 90, estavam ressecados, maltratados e desbotados como o resto. Vestia uma blusa branca básica que parecia gasta e uma calça jeans larguíssima, de cintura alta, diretamente saída dos anos noventa.

— Jesus, calças baggy! — disse a psicóloga para si mesma, corrigindo-se também em pensamento — Oversize, oversize.

A mulher entrou, cumprimentou a profissional com uma voz nasalada e, sem qualquer rodeio, se afundou na poltrona. A psicóloga leu o nome na ficha: Leididai Márcia Sixkiller.

— É brincadeira — pensou a psicóloga, espantada com a estranheza da obra que agora se desvelava. A mulher a escolhera após o Poder Judiciário disponibilizar uma lista de possíveis profissionais de Psicologia. Ela fora encaminhada após tentar matar alguém. O juiz desconfiava que era a sexta tentativa — foi uma piadinha de mau gosto? — e sinalizara que Leididai parecia sofrer de algum tipo de transtorno delirante. Parecia confundir realidade com fantasia. Parecia. Não havia outras informações, tudo muito sigiloso.

— Leididai, certo? — a psicóloga encarou a mulher, que arregalou ainda mais os olhos já arregalados. As lágrimas caíram e logo o pranto correu solto, cheio de buáás e fungadas. A psicóloga estendeu a caixa de lenços e esperou pacientemente. — Mais calma? — a mulher fez que sim com a cabeça — Muito bom.

Ela aquietou-se um pouco. Parecia uma paciente de anos porque, além de estar a vontade, as memórias que desfilaram por seu semblante eram reconhecidas pela psicóloga.

— Muitas lembranças, né? — a mulher fez que sim, espantada com o poder adivinhatório da terapeuta. — Então, me conte o que você está pensando para eu te entender melhor.

Leididai se recostou na cadeira, melancólica.

— Eu lembro uma vez, doutora, quando eu era bem pequena e os super-heróis vieram na minha cidade — a psicóloga inquietou-se. Seria gente vestida de super-herói? – E ele olhou pra mim!!! — Leididai entusiasmara-se como uma pequena criança que acabara de ganhar um chocolate — Depois ele se aproximou e tocou minha mão. Eu saí de lá ainda sentindo a mão dele na minha. — o sorriso se alargara — Foi amor à primeira vista. Não lavei minha mão por uma semana.

— Ele quem? — a psicóloga teve a impressão de ter perdido algo.

— Peter Parker, ué! — Leididai olhou surpresa — Você deve conhecer.

A psicóloga balançou a cabeça, condescendente. Agora vi de tudo, pensou.

— Eu juro, doutora, foi como se o mundo tivesse parado! — a mulher fechou os olhos por um momento, imersa nas lembranças — Ele sabia que eu estava esperando por ele. Eu senti a energia através da luva. Ele me escolheu. — e os abriu repentinamente, fixando-os na psicóloga, que congelou na cadeira — Ele era meu!

A psicóloga entreabriu a boca e logo fechou. Ia dizer alguma coisa, mas resolveu ficar calada. A sabedoria ancestral da ex-professora ecoou em sua mente: se babar, melhor não contrariar. Foi mesmo melhor calar, porque pouco a pouco, a expressão de Leididai escureceu.

— Só que, às vezes, as coisas fogem do controle. – disse, misteriosa.

A psicóloga agora treinava a si mesma para ser empática. A sessão mal começara e ela já tinha vontade de rir e chorar. Resolveu anotar. Rabiscar, na verdade, enquanto Leididai continuava a falar.

— Eu tinha uns dez anos quando eu ganhei o Homem-Aranha do meu pai – ela suspirou e os seus olhos brilharam como os de uma criança — Meu Piterzinho, ele era lindo, lindo, todo meu. — Outro suspiro e mais brilho no olhar — Mas meu pai me levou na casa da minha amiga para brincar e mandou que eu levasse o Piterzinho também — Os olhos já não brilhavam com a mesma alegria — Aquela menina teve a ousadia de casar meu Piterzinho com a Barbie. — Agora eram olhos ensandecidos, acompanhados de um sorriso torto de pura satisfação — Mas eu sequestrei a Barbie... e a matei.

A psicóloga levantou a cabeça do bloco de anotações e fixou os seus olhos na face transtornada da mulher. A culpa ecoou de algum lugar e Leididai tentou se explicar:

— Ele não podia casar com a Barbie, doutora! Ela é uma patricinha, não entende ele, doutora! O Piterzinho tem uma responsabilidade... e a Barbie... — seu olhar, que era era só desdém... – aquela lá só quer passear naquele conversível cor-de-rosa fake e dar uns pega no Ken! – ...agora era de uma mulher madura, senhora de si...  — Então, eu fiz o que qualquer pessoa decente faria para proteger seu amado. — ... e a psicóloga tentou entender como alguém trocava de sentimento tão rápido.— Sequestrei a Barbie — ela faz um gesto com as mãos, como se estivesse estrangulando alguém — e arranquei a cabeça dela.

— Sim, sim, óbvio. — A psicóloga respirou. Precisava ser empática. Precisava ser acolhedora.  Precisava entrar na fantasia da paciente. Precisava ser a âncora com a realidade. Precisava aceitar o frio na espinha. — Eu entendo, Leididai. — Mas o incômodo era crescente — Com grandes poderes vem uma grande responsabilidade, não é mesmo?

Leididai sorriu com admiração e um estranho brilho no olhar. Escolhera a psicóloga certa.

— Exatamente, doutora! Você entende! — se inclina um pouco para frente, ainda sorrindo, e sussurra — Foi isso que o Tio Ben ensinou, né? — Leididai Márcia Sixkiller pára repentinamente, parecendo semi-catatônica. O sorriso murchou pouco a pouco e o olhar fixou-se em algum ponto que a psicóloga não conseguiu determinar — Só que... naquele dia, eu acho que perdi essa noção.

— Que dia? —A psicóloga segurou o impulso de complementar a frase com criatura. Psicólogos também ficam aturdidos por dentro, espantados por dentro, assustados por dentro e querendo ir ao banheiro. Mas, no caso desta psicóloga, a curiosidade auxiliava a manter o controle dos esfíncteres.

— No dia em que eu... eu... — soluçou uma vez — eu... — soluçou outra — tentei... — fungou alto, limpou os olhos com o lencinho e fez uma pausa dramática — No dia em que eu tentei matar o Homem-Aranha.

— Hein? — A psicóloga pareceu confusa — Espera. — então respirou, suavizou a voz e falou o mais mansamente que pode. — Leididai, me explica isso melhor.

Agora todo o choro da mulher se transformara em indignação que explodia em forma de palavras.

— Não foi um Homem-Aranha qualquer! — o corpo de Leididai que até a pouco estava murchinho de repente se encheu de energia — Foi aquele... aquele da Carreta Furacão!

A psicóloga sentiu uma onda de choque e se recostou na cadeira. Agora tinha certeza de que já vira de tudo mesmo. A mulher desopilou.

— Ele estava lá todo feliz dançando com o Fofão e debochou de mim e do meu amor que sempre foi dele desde quando eu era pequena e meu pai brigava comigo porque eu queria tudo dele e eu amarrei uma corda no batente da porta para fazer uma teia e depois eu quebrei a porta escalando e quebrei móveis também porque eu queria ser como ele e como não funcionou eu me joguei do telhado para ver se ele me salvava e ele não veio e eu quebrei dois braços e eu perdoei porque eu o amo só que eu fui crescendo e ele me ignorou e eu entendi porque ele é um herói e eu sou só a Leididai Márcia Sixkiller que é uma pessoa comum e quando ele debochou de mim e olhou pra aquelazinhas eu não pude mais viver com isso e resolvi jogar ele fora da minha vida e derrubei ele da carreta e...

Leididai parou uns segundos para puxar o ar e o que veio em seguida foi uma gargalhada psicótica que a terapeuta resolveu ignorar. O olhar intenso que veio depois também foi ignorado.

— Eu o odeio.

— Quem eram aquelazinhas, Leididai?

— A Barbie e a Mulher Maravilha.

— Ah, sim, claro. — A psicóloga anotou na ficha umas palavras, afeto perturbado, labilidade emocional, será que ela sabe que esse Homem-Aranha não era de verdade?, mais para disfarçar o enorme espanto que sentia do que para separar pontos para o estudo do caso.

Leididai desligou o modo psicótico por alguns segundos e começou a suspirar.

— Eu acreditei nele, doutora, e no fim paguei mico — havia razão, mesmo na loucura. — Aquele andou na prancha-cha foi como um tapa na cara! Cuidado, tubarão vai te pegar? – o rosto dela era pura dor —  Cantou, olhando pra mim e dançando do lado do Fofão! Depois foi pro lado daquelas lá —  as lágrimas voltaram a escorrer.

— Compreendo, compreendo. — isso, muito bem, dona psicóloga, continue assim — Você se sentiu muito frustrada.

— Frustrada não! Traída! — Ela gritou, mas logo encolheu-se — Você já sentiu isso, doutora? Como se alguém que você ama estivesse se distanciando de você, mesmo quando está bem ali, na sua frente?

A doutora primeiro fez que não com a cabeça, mas se corrigiu rapidamente e fez que sim.

—Sim, sim. É um sentimento muito complexo. — As palavras eram vagas, é certo, mas a psicóloga não achou nada mais empático para o momento. Leididai pareceu nem se importar.

— Eu acho que foi por isso que eu fiz o que fiz na Carreta Furacão. —  Ela sentia raiva, a psicóloga podia ver — Eu subi lá e empurrei ele. Eu queria que ele morresse! — não era raiva, era ódio — Mas ele deu uma pirueta e pousou em pé. Ele é o Homem-Aranha, né? — agora era admiração — Mas, ao mesmo tempo... eu sabia que ainda tinha que lutar. — agora, determinação — Eu fui atrás dele, chamei ele de traidor na cara, porque não sou dessas que falam pelas costas — tinha honra — mas o Fofão estava atrás de mim e aquela música... — ela cantarolou andou na prancha-cha, cuidado, tubarão vai te pegar, enquanto balançava o corpo. Depois fica com raiva novamente — Ele estava zombando de mim... O Fofão zombando de mim, a música zombando de mim, todos zombando de mim! — olhou para a psicóloga com os olhos vidrados — Como se eu fosse a louca, doutora. Por acaso eu sou louca?

A psicóloga fez que sim com a cabeça e, antes de terminar o movimento, fez que não. Depois mordeu os lábios por dentro.

— Hum. – Não podia falar nada além disso, senão perderia o controle.

—Eu não podia mais aguentar essa sensação, entende? — Leididai suspirou, os ombros caíram e a voz ficou mais baixa. Estava triste. — Eu acho que eu dei uma leve surtadinha ali.  — E pôs-se a esperar por palavras sábias da terapeuta, ainda com os olhos vidrados.

 A psicóloga revisou mentalmente a história. Leididai, obcecada pelo homem aranha, invadira a Carreta Furacão e tentara jogar o herói de cima dela. Porém, ele, acrobata, deu uma pirueta e acabou em pé. Leididai, não satisfeita, havia descido da carreta, gritando traidor, traidor e foi perseguida pelo Fofão, enquanto o Homem-Aranha sambava ao som de andou na prancha-cha, cuidado, o tubarão vai te pegar, para o delírio da galera.

— Eu entendo, lógico que entendo. — disse a psicóloga, mordendo os lábios com mais força ainda. Era muito profissional, não podia deixar a imagem do Homem-Aranha e do Fofão sambando ao som de andou na prancha-cha, cuidado, o tubarão vai te pegar afetar seu profissionalismo.

— Ah, doutora, é um alívio saber que você me entende – suspirou Leididai, sentindo-se compreendida. — Talvez seja egoísta da minha parte, mas eu queria que ele fosse só meu. Só que eu não sou boa o suficiente.

O relógio da psicóloga emitiu aquele barulhinho delicado de fim de sessão, graças a Deus.

—Encerramos por hoje — disse a terapeuta, pausadamente, após respirar outra vez bem fundo. Em seguida, deu um largo e treinado sorriso — Foi muito interessante tê-la aqui, Leididai — havia sido muito interessante mesmo — Continuamos deste ponto na próxima sessão.

A psicóloga conduziu a paciente, que parecia em paz, até a saída. Fechou a porta e encostou a testa nela. Respirou fundo novamente, bem devagar, contando até dez enquanto inspirava, mas não pôde mais se conter. Explodiu em uma gargalhada histérica, seguida de um choro que durou alguns minutos. Fora uma sessão bem estranha.

— Essa vida me reserva muita coisa, não é querido? — ela sorriu, acalmada, para a imagem de um Coringa desmilinguido, mas compreensivo, colado na capa do bloco de notas. Achou que o Coringa sorrira de volta, mas não perdeu tempo nisso. Os esfincteres logo iriam render-se.

 

Comentários

Francisco disse…
Pela imagem pensei que o Spider seria uma drag. Gostei bastante, ri durante a leitura toda, foi ótimo!
Nadia Coldebella disse…
Oi, Francisco, é a primeira vez que vejo vc comentando nos meus textos. Agradeço muito seu tempo de leitura e o comentário. Eu a queria a imagem de um homem aranha sambando com o fofão, mas não achei uma legal. Mas achei essa engraçada.bGde abç!
André Ferrer disse…
Você já atendeu uma Leididai Nadia? Fiquei curioso. Texto engraçado e muito bem escrito.
Nadia Coldebella disse…
Já. Ela trouxe a morte em pessoa para o consultório. Logico que só ela via, mas eu precisei falar com a morte pra ela falar comigo. Como a sessão ia ficar mais cara, a morte esperou do lado de fora kkkk
Zoraya Cesar disse…
HAHAHA, eu tava esperando que a Laididay matasse a psicóloga. Mas os loucos se reconhecem hehehehe. Amei a história, vc tá com um timing para o humor negro maravilhoso! Márcia Sixkiller hahahahaha
Nadia Coldebella disse…
Márcia é o nome da minha psicopata interior
Ana Raja disse…
Nádia, que história incrível. Bom demais ler você.
Nadia Coldebella disse…
O homem aranha ageadece
Jander Minesso disse…
Eu já estava rindo, mas naquele parágrafo em que você faz uma síntese do que tá rolando eu perdi o fôlego.
sergio geia disse…
Nádia, conhecendo outros contos seus, li com certa reserva, embora bem engraçado mesmo. Que narrativa!
Nadia, que texto incrível! Amei me colocar na pele da psicóloga, e também fiquei aqui me perguntando se você já passou por uma situação dessas. Também adorei as referências esdrúxulas, o Homem-Aranha com o Fofão deram um toque cômico e surreal ao texto fantástico. Outra coisa que adorei foi como você foi mostrando como existe lógica, mesmo na loucura, e dissecando as emoções da personagem. E terminou co chave de ouro, mostrando que a psicologa não está tão distante quanto pensamos da loucura da paciente!! Este já entrou na lista dos meus textos de sua autoria favoritos!!
Nadia Coldebella disse…
Alfonsina, obrigada pelo comentário generoso. Como dizem, a recíproca é verdadeira, tbm gosto muito de ler seus textos e desvelar as camadas de profundidade que eles contém. Sobre eu já ter atendido casos assim, atendi sim. Contei a história no comentário do André. É interessante porque julgamos a loucura como a falta de lógica, mas na verdade o q falta mesmo é a âncora com a realidade. Hj em dia, a separação entre loucos e não loucos é bem tênue. Muito obrigada pelo comentário pelo carinho!
Albir disse…
Li com a respiração suspensa. Temi que ao final da consulta a paciente já fosse Leididai Márcia Sevenkiller!
Nadia Coldebella disse…
Nem tudo são cadáveres, dom Albir, as vezes só é uma piracãozinha msm

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