PERSIS(TENTE) >> Soraya Jordão


Muito antes de se nomear “cabeça no mundo da lua” como transtorno do déficit de atenção (TDA), eu já sabia que algo me fazia diferente dos outros. Não era só por me desligar durante as aulas ou por não ter paciência para fazer dever de casa, tarefas monótonas e atividade física. A aversão à espera e à rotina, a imensa dificuldade para administrar o tempo, planejar e organizar a vida e as coisas me condecoravam com críticas e castigos diários. Eu não compreendia bem o que acontecia, mas tinha clareza da distância abissal entre mim e os bem-sucedidos do cotidiano. Desistir, deixar para lá e buscar o caminho mais curto era sempre a minha primeira opção. Não havia vontade nem paciência para persistir. Tinha muita pressa e pouco interesse nos acontecimentos. Nunca me abraçou a garra para competir ou o desejo imenso de vencer. De certa forma, acredito, a desatenção te treina para lidar com as perdas, porque você acaba esbarrando com elas em tempo integral. Não há déficit de atenção sem déficit de persistência. Isso eu descobri ouvindo Betânia cantar: “sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder. Vencer o inimigo invencível.”

O esquema de sobrevivência é simples: se complicar, demorar ou dificultar, desista! E assim vamos seguindo na base da criatividade, do traquejo e do pinote. 

Com a maturidade, de forma mais intuitiva, percebi o saldo das perdas acumuladas e a importância das estratégias para vencer a mim mesmo todos os dias. Porém, hoje, num dia como outro qualquer, a natureza me ofereceu um exemplo prático sobre a dimensão do prejuízo de quem impulsivamente desiste por preguiça ou intolerância à espera. Tal constatação me foi apresentada por um grupo de pombos. Há meses, a área da piscina do condomínio em que moro é ocupada por esses indesejáveis visitantes. Diante disso, a síndica decidiu isolar a escada que dá acesso à piscina, com um tecido verde, de forma a impossibilitar a farra dos pombos. Também diminuiu a altura da água para dificultar o processo de exploração pela borda. O grupo habitual de quatro pombos chegou na piscina e se deparou com a novidade.  Três deles, mais parecidos comigo, sequer perderam tempo com a surpresa. Reconheceram o obstáculo e voaram para longe, provavelmente, procurando piscinas menos trabalhosas. Mas um deles, que, carinhosamente, nomeei Anselmo, decidiu persistir. Gastou um tempo observando a situação, rodeou a escada, perscrutou o tecido verde, tentou umas outras manobras demonstrando insegurança e cautela. Fez diversas incursões para resolver o problema, sem sucesso. Caminhou em torno da piscina como quem precisa organizar as ideias. Eu, do meu lado pensando: por que não desistes? Deve ter lugar mais fácil. Para minha surpresa, Anselmo se aproximou da piscina mais empinado, mais prosa. Voou até o corrimão da escada, foi deslizando de passinho em passinho até alcançar a água. 

Nós, os humanos arrogantes, fomos golpeados pelo poder impiedoso daquele que não se curva a esse papo de destino. Não tivemos outra opção senão aplaudir Anselmo. 

Agora, ele desfruta como rei do ambiente e é reverenciado por todos. 

Os outros três pombos, desatentos e impulsivos como eu, seguem sem saber como entrar numa piscina com obstáculo. 

A vida parece simples, mas não é. Meticulosa, se apresenta muito mais interessante aos curiosos e persistentes.

Comentários

Anônimo disse…
Maravilhosa reflexão!
Ana Raja disse…
Que baita crônica! Me identifico com o Anselmo.
Nadia Coldebella disse…
Amei a historia. já fui uma pomba não-anselmo. Hj em dia, aprendi a persistir. Aliás, não ha nada que não se aprenda, desde que a insistência, a disposição e a paciência resistam.
Anônimo disse…
Bela crônica. Afinal, a persistência é o caminho para se conseguir os nossos objetivos.
Rodando o globo disse…
Muito boa a crônica, parabéns pela crônica e classificação
Anônimo disse…
Muito bom! Vamos aprender com o Anselmo.
Eliane Braff disse…
Esse Anselmo desfruta de seu esforço e você, Soraya Jordão, certamente alcará voos incríveis com sua criatividade na escrita! Parabéns pela crônica de hoje!
Anônimo disse…
👏👏👏👏👏 Parabéns!! Está ótima! Torço para que você seja como Anselmo. Vitoriosa
Zoraya Cesar disse…
Ah, agora quero ser uma Pomba-Anselmo. Há q sermos educadas para isso, diariamente. Realmente, tão fácil desistir...
Jander Minesso disse…
Mas a arte de desistir e procrastinar também tem sua beleza, né?
Albir disse…
O que faço é maldizer a procrastinação. E procrastinar.

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