AZURRINA >>>> Nádia Coldebella

O inverno deitou seu manto branco sobre a humilde Lamon, vestindo a cidade como uma noiva de pele cinza. O pequeno Luigi foi até a janela do quarto e contemplou a vista de rara beleza. As montanhas, muitas delas, despertas desde tempos imemoriais, esforçavam-se para tocar o manto azul do céu. E como sentinelas colossais, dedicavam-se a proteger o lugarejo. Escondiam, em seu ventre, construções muito antigas, tão milenares quanto o vilarejo.

Enquanto o branco da neve enchia seus olhos, seu coração encolhia: a vida estava sendo muito dura com toda a gente. Havia fome e doença por toda parte. Muitas pessoas morriam e outras tantas arrumavam suas coisas, fechavam suas casas e partiam rumo a novas terras. Estão do outro lado do mar, dissera o nono, suspirando de saudade de um sonho que nunca acontecera.

O pai também pensava nas novas terras, ele sabia, porque depois de lamentar a ingrata sorte para a mãe, falou animadamente daqueles que haviam se arriscado. A mãe, uma mulher muito prática, chamara a atenção do marido:

-Toni, olha pra minha barriga, homem! Logo o bebê nasce. Como vou ficar um mês no navio desse jeito?

Luigi suspirara de alívio e viu o pai suspirando de resignação, mas isso era temporário. Toni era descendente de uma raça teimosa. Não se conformaria, mas ficaria quieto, aguardando uma oportunidade para convencer a esposa. 

O menino saiu da janela, deixando a pontadela de apreensão de lado. Vestiu o casaco, as luvas e a touca. Animou-se e saiu disposto a brincar na neve, pois logo mais, em algum momento misterioso da noite fria, quando estivesse mergulhado no mais gentil de seus sonhos, receberia a visita de La Befana. Luigi havia se certificado, durante todo o ano anterior, de se comportar bem, cuidando do nono, ajudando o pai nas coisas da terra, obedecendo a mãe e, principalmente, se contendo para não roubar as uvas e o queijo da nona. Aos dez anos, ele sabia que esta era a idade em que a boa bruxa costumava parar de visitar as crianças. Talvez ela deixasse uma carta pra ele, dizendo que era hora de crescer, mas ele se adiantara, escrevendo antes, pedindo para ser criança por mais um ano. E ele tinha fé. 

A madrugada chegou gelada e o choro de um neném o surpreendeu em sua cama. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto do pai. A mãe estava deitada com uma pequena criança, extremamente branca, que mamava em seu peito. Luigi sentiu seu coração esquentar quando pegou na mãozinha do bebê.

- Carolina! - disse o menino, surpreendendo a mãe, que abriu um sorriso de satisfação. Ele olhava encantado para a pequenina e decidiu que, mesmo se La Befana atendesse seu desejo, agora ele precisava crescer para cuidar da irmãzinha. Foi despertado de seus pensamentos pelo piado desesperançado de uma coruja que, de tão triste, o fez estremecer.


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Luigi acordou com o burburinho. A irmã ainda estava na cama, sua pele albina e seus longos cabelos brancos resplandecentes, iluminados pelo sol da manhã que entrava ainda tímido pela janela. Era uma visão surpreendente, quase divina, quase de um anjo de Deus.



- Toni! - A voz grave e urgente parecia ser conhecida.- Toni!

Ele foi até a cozinha e viu o pai, ainda se vestindo, dirigir-se a porta dos fundos. Taciturno, o homem, que o rapaz reconheceu ser o vizinho, junto com outros tantos que ostentavam nos rostos uma expressão hostil, relatou ao pai que, na outra noite, cinco crianças haviam morrido em condições misteriosas.

- Não acordaram, foram encontradas mortas pela manhã. Tinham a idade da Azzurrina.

Apelido detestável, pensou Luigi. Depois do ano que sucedeu ao nascimento da criança, os habitantes da cidadezinha, percebendo-lhe o albinismo e maculados por centenas de anos de religiosidade supersticiosa e sofrimento, murmuravam que a pequena era um sinal do demônio, que carregava em si a maldição que havia tomado conta daquelas terras. Os pais estavam sempre angustiados e escondiam-na em casa a maior parte do tempo, deixando-na sob a supervisão do filho, protetor zeloso e dedicado.

Em certa ocasião, a mãe, preocupada com o bem-estar da menina, fez uma infusão de ervas que havia aprendido com a nona e derramou em seus cabelos, procurando escurecê-los. Foi uma escolha infeliz, que deixou as madeixas brancas da criança com um tom azulado, lhe rendendo o infame apelido. Depois de um ano inteiro, a cor foi completamente eliminada do cabelo, mas o apelido permaneceu.

- Carolina está na cama, pai. Está dormindo - disse ele em voz baixa, na verdade respondendo ao olhar da mãe que naquele momento saia do quarto. Ela não parou na cozinha, mas seguiu em direção a sala e entrou no local onde estava a criança.

- Sinto muito, Giuseppe. - disse Toni. O vizinho se aproximou da porta, deixando o pai alerta. - Porque vocês estão aqui?

- A sua Azzurrina está viva, não é? - o olhar do homem estava anuviado e Luigi percebeu um lampejo de ira nele - A minha menina foi uma das que morreram. Porque tua filha não morreu, Toni?

O rapaz não esperou a resposta do pai. O que estava por acontecer desenrolou-se em sua mente como o clarão de um relâmpago. Apenas virou as costas, dirigiu-se ao quarto, tomou a criança dos braços da mãe e fugiu pela porta da frente, com toda a velocidade que suas pernas aguentavam, em direção ao velho castelo assombrado.


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Apesar de antiga, a construção ainda estava preservada. Algumas trepadeiras escalavam os tijolos, já machucados pela ação do tempo. A direita, encontrava-se uma torre alta que servia de abrigo para os pássaros que por ali passavam.  As janelas da torre estavam completamente nuas e, quando os ventos fortes do inverno chegavam, cruzavam-nas, emitindo um uivo macabro. Nas imediações, havia uma espécie de porão, que provavelmente, em outros tempos, servira de abrigo ou esconderijo. Os antigos contavam que ali encontrava-se um sem número de túneis que ligavam o castelo a diversas igrejas e outras construções que abundavam na região. Os habitantes do lugarejo temiam o local que julgavam assombrado, e, por causa disso, dificilmente viriam até ali.

Ele sentou-se em uma pedra e observou a irmã que, alheia ao perigo, corria pela grama e ria, brincando com as sombras que eram formadas pelos raios de sol ao inundar de luz seu cabelo albino. Repentinamente, ela abaixou-se e sua expressão era de espanto: encontrara uma pequena pedra vermelha, muito bonita, que parecia ter sido esculpida a mão. Levou-a até o irmão e entregou-lhe. Luigi abraçou a menina com ternura e pôs-se, cuidadosamente, a analisar o pequeno tesouro. Ele ainda admirava o artefato, quando ouviu, ao longe, o chamado do pai. 

- Papai - apontou a criança, distraindo-se em seguida, com pequenos insetos que saltitavam pela grama. O rapaz levantou-se e deu alguns passos a frente. O pai estava sozinho e ambos permaneceram calados alguns instantes, para se certificar que não havia mais ninguém chegando. O menino achou estranho o silêncio não ser cortado pelas exclamações da irmãzinha. Seu olhar percorreu toda a construção e ele saiu em passos rápidos, seguido pelo pai, gritando o nome da criança e espantando um bando de pássaros brancos que, com os raios de sol em suas costas, alçaram voo em direção ao sul.


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Luigi acordou suado, chorando e tremendo. Havia gritado pelo nome da irmã. Foi acalmado pela esposa, que o acalentou nos braços. Em todos esses anos, os sonhos se repetiam, nítidos e repletos de lembranças aterradoras: os mapas dos túneis trazidos pelo padre da cidade vizinha, ele e os familiares revistando cada canto do castelo, pessoas de toda parte se juntando na busca. No final, todos desistiam e os pais, desesperados, lançavam o rosto por terra. E ele via a irmãzinha, branca e iluminada, chamando por ele, para depois se extinguir, como uma luz que se apaga. 

Sentiu-se enjoado, não sabia se pelas noites mal dormidas ou se pelo balanço das ondas. Castello di Godego, era o nome do navio - ironicamente, o mesmo nome da construção. Ele virou-se no colchão e colocou a mão no bolso. A pedra vermelha estava lá e ele a levaria consigo até a América. As lembranças, porém, ele queria que se perdessem para sempre nos nevoeiros que às vezes visitavam o oceano.


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Para você saber: 

Azzurrina é uma lenda italiana da Idade Média, que eu tomei a liberdade de misturar um pouco com memórias da minha família. 

La Befana é uma lenda italiana também. Ela é um personagem típico do folclore italiano, uma espécie de Papai Noel. Ela visitava as crianças na noite de cinco para seis de janeiro, para encher de caramelo as meias daquelas que se comportavam bem ou com pedaços de carvão aquelas que se comportavam mal. Ela também é conhecida como bruxa, por ser uma velha vestida de negro, que voa montada numa vassoura.

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Este conto faz parte do projeto Cronicas de um ontem. Foi publicado pela primeira vez em duas partes: a primeira em 29 de julho de 2021 e a segunda em 12 de agosto de 2021.

Comentários

Jander Minesso disse…
Que história bonita, Nádia! Ela bate forte ao mesmo tempo em que esquenta o coração. E cada linha das suas descrições me colocou lá, junto com os personagens. Gostei muito.
Zoraya Cesar disse…
Eu lembro dessa história, de tão marcante que ela é! Mas nao tive jeito, li linha por linha, com a mesma ansiedade, esperando lá no fundo que, dessa vez, vc desse um final diferente. Mas esse final foi perfeito demais, ainda bem que vc nao mexeu. Agora, o texto em si: o encadeamento dos acontecimentos nos pensamentos de Luigi, a inserçao de Belfana, o final, tudo foi bom demais! Quero fazer uma exigência: um conto exclusivo com Belfana!
Ana Raja disse…
Nádia, a sua escrita é encantadora!
Albir disse…
Também me lembro dessa história. Senti medo na época e estou tirando de frio agora ao relê-la, mesmo neste inverno abrasador do Rio de Janeiro. Dói, mas é muito bom de ler!

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