A QUINTA DOSE >> André Ferrer
Sentia calor e as suas mãos formigavam. Pensar nas consequências fazia com que o suor escorresse no pescoço. Estaria, há uma década e meia, atrás das grades. Contudo, também a realidade incomodava. Uma provocação sem resposta. Um chamado jamais atendido. A velha decepção que renascia de velhas hesitações.
Então, ele entrou, foi direto ao balcão e pediu um shot sem olhar para trás. Quando ganhou coragem, virou-se e descobriu que, ao contrário da sua cabeça, o salão estava vazio.
— Cedo demais — disse o barman.
O freguês nada disse.
— Tudo bem. Tudo bem. Afinal, nós já abrimos. Não é mesmo?
O freguês não respondeu.
— Você não é daqui — o barman insistiu, aguardou em vão e foi lavar uns copos.
O freguês encolheu-se. Voltou a sentir o formigamento. Passou as mãos nas calças: do joelho até as coxas. Então, escutou a voz atrás de si. Tão lá atrás que ele não soube se era uma voz do presente. A voz masculina que o freguês conhecia, decerto, melhor do que todas.
— Bar, em inglês, é barra.
— Lá vem ele — fez a outra voz, que ele também conhecia (uma voz masculina, porém afeminada). — Nós já sabemos de tudo isso.
Então, a terceira voz protestou: — Conta. Ah, conta! Conta.
Voz de mulher. Definitivamente, “da” mulher... Que também estava lá atrás. Tão atrás, ainda, de toda e qualquer mágoa que os separava hoje em dia! Daquilo, sim, ele sabia.
— Os bares, antigamente, apresentavam uma barra no lado de fora do balcão.
— Bravo! — a mulher tinha aplaudido. — Bravo! Bravo! — tinha dito ela. Como sempre, bem humorada, solícita e efusiva em relação aos amigos. A ele, em especial, naqueles outros tempos. O que, seguramente, modificara-se em relação a ele. Porque... Porque os outros continuavam dignos e ele, não. Todos. Fossem quem fossem. Menos ele. O homem que pedia o segundo shot enquanto, lá atrás, ela morria de rir. Tão lá atrás, realmente, de todo e qualquer terror que os afastava aquela noite.
— Foi por pouco... As consequências... Querida trapaceira... — balbuciava, sem utilizar nexos, pouco intimidado pelos primeiros frequentadores da sexta-feira.
Apesar de notá-lo, faziam de tudo para ignorá-lo. Chegavam, informavam os seus pedidos e o barman piscava para eles, de vez em quando, a fim de sinalizar o vexame iminente.
— O senhor quer mais um! — disse o homem quando o freguês pediu a quinta dose. Uma hora e meia tinha passado e o lugar estava cheio.
— Mais um.
Ao redor do balcão, as pessoas notavam-no. Esforçaram-se ao máximo para ignorá-lo até que ele pagou, derrubou a bebida de alguém e resmungou uma “querida trapaceira” enquanto andava com dificuldade.
— Me solta — disse a quem abraçava-o de repente. O rapaz que tinha impedido a sua queda.
Braços abertos, encolheu-se no meio da roda. Ficou caolho e, apesar do esforço, aquilo pareceu mesmo irremediável. Então, a fim de arrumar as coisas, esforçou-se e conseguiu abrir o olho bom de mira. Fechou o ruim.
Numa pose ameaçadora de atirador, buscou as armas inexistentes ao redor da cintura. Dentro dos bolsos. A sensação conhecida que renascia de velhas hesitações.
Esta crônica faz parte do projeto Crônica De Um Ontem e foi publicada originalmente em 27 de setembro de 2022
Comentários
Você só dá uma dica, a história fica por conta do leitor.