A CURA >> Albir José Inácio da Silva
Cansou de ser alvo de chacotas por sua ojeriza a assuntos
ligados ao sobrenatural. Já nem precisava que o humilhassem com piadinhas, ele
mesmo se sentia um verme e sua autoestima despencava a cada sobressalto com as
coisas do além.
- Preciso me curar – disse - Não! – corrigiu, como aprendeu
com o coach – vou me curar!
O problema é que não acredita em terapeutas. Por mais que
pareçam técnicos e científicos, ele tem certeza de que eles frequentam os dois
lados da vida: o lado da gente normal, do paciente, do bem, e o outro lado,
obscuro, dos demônios e suas entidades. Eles têm ajuda para adivinhar nossas
intimidades!
Desconfiava ainda que essas moças, com carinha de anjo,
óculos de intelectual e voz suave, utilizavam nossas confissões no divã para
escrever contos proibidos para menores e pessoas sensíveis.
Na única vez que conseguiram arrastá-lo para um consultório
desses, ele se deu alta na segunda consulta. A terapeuta ainda insistiu com
sotaque do sul:
- Se não queres falar, escreve sobre o que te angustia, daí.
Na época pareceu absurdo, se não conseguia falar, como podia
escrever? Mas agora estava repensando a vida. A cura era uma obstinação. Faria
o que fosse preciso. Vejam o tamanho do desafio: não gostava de terapeutas nem
de escritores de histórias de terror, mas tinha que escrever histórias de
terror por conselho de uma terapeuta, “curar-se
pela escrita”, como sugere a Terapia da Palavra.
Depois da palestra motivacional do tipo “faça você mesmo!”, estava
disposto a enfrentar o tratamento. Queria penetrar na escuridão que tem evitado,
mas sabe que se esconde em sua angustiada cabeça.
Se conseguir palmilhar cada centímetro dessa desolação, sentir
o cheiro de enxofre, ouvir correntes e gemidos, desafiar as criaturas em quem
não ousa pensar, estará curado! Já se imaginava rindo dos contadores de histórias
macabras, desafiando ambientes assombrados e narrando, ele mesmo, casos de
maldições e manifestações do demo.
Vasculhou a mente em busca de horrores, mas só encontrou
clichês. Precisava da experiência de um lugar que por si só, ainda sem os acontecimentos,
alterasse a pressão, os batimentos e a respiração do leitor. Precisava sentir o
medo que queria retratar. Sabia qual era esse lugar, quantas vezes sofreu só porque
a casa ficava na vizinhança!
A casa era comum, construída ali pela metade do século
passado, sem nada de assustador, a não ser a sua história. Alertados pelo
cheiro, os vizinhos encontraram o casal sobre a mesa de jantar, pelo menos os
pedaços que sobraram do que parece ter sido um banquete.
Os herdeiros vieram, olharam a casa, conversaram com os
vizinhos e partiram para nunca mais voltar. O chefe do departamento de urbanismo
disse que ia demolir e fazer uma praça. Mas foi encontrado morto e debruçado sobre
o projeto da praça em sua mesa de trabalho.
Pois era ali que o agora destemido Lênio ia fazer laboratório
para sua cura.
Já na rua, um vento frio assoviou em seus ouvidos. Chegou a
se encolher, mas empertigou-se, era aquele vento mesmo que ele queria!
Quando a iluminação da rua se apagou, ele pensou em desistir,
pelo menos adiar, mas decidiu que era só coincidência e continuou pisando forte.
Já perto da casa maldita, um relâmpago iluminou a rua deserta, e ele viu.
Continua em 30/09/2024.
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Homenageada!