OS ADORADORES DE GAIAMUND - 2A PARTE >> Zoraya Cesar


 

Resumo – A jovem aprendiz, Shaytan, que estava na fazenda dos Côlson, Adoradores de Gaiamund, me pedira socorro. A primeira coisa que encontrei ao subir a escada foi o sangue se esparramando pelo chão. Link para a 1ª parte

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Até hoje tenho dificuldade em descrever aquela cena, que parece fruto da imaginação. De uma imaginação doentia.

O cheiro nauseabundo de esgoto me deixou tonta.

De um lado do quarto, Shaytan. Eu a entrevistara, era uma mocinha linda, os olhos doces, encaracolados cabelos negros, sorriso encantador.

Era Shaytan. E era também um monstro. Sua face distorcida, num esgar sarcástico e maldoso. Da boca escancarada saía uma baba amarronzada e uma comprida língua roxa, que se mexia qual a cauda de um gato. Teria sido envenenada pelos Côlson? Do fundo de sua garganta ouvia-se um som estranho e ameaçador, como o de um animal prestes a atacar.

A sombra de Shaytan projetada na parede mostrava uma criatura com a cabeça cortada, pendente. Só podia estar delirando, pensei.

Em frente à Shaytan, o casal Côlson. Trajavam a roupa cerimonial dos Adoradores de Gaiamund. Olhando o marido, vi de onde saía a poça de sangue que descia as escadas e empapava meus pés. Seu corpo fora empalado por uma coisa que parecia uma garra enorme. Não sei como continuava de pé.

A Sra. Côlson segurava um atame numa das mãos e proferia estranhos encantamentos na língua de nossos ancestrais. Com a outra, tentava proteger o marido dos ataques de Shaytan.

Então, os personagens daquela peça macabra notaram a minha presença. E, como que hipnotizada, enxerguei Shaytan em sua forma habitual. Ela parecia tão frágil, tão amedrontada, um grande ferimento em sua garganta. Olhou para mim e, estendendo os braços, choramingou:

- Me ajuda.

- NÃO! Gritou o Sr. Côlson - NÃO se aproxime dela.

- Eles querem me matar, olhe, estou ferida...

Embora nunca tenha ouvido falar que os Adoradores de Gaiamund faziam sacrifícios rituais, o que sei eu? A segurança de Shaytan era responsabilidade minha, eu a coloquei ali.

- Ela não é humana – resfolegou o Sr. Côlson – É um demônio Rākasa, o destruidor. Você viu o estrago no seu caminho para cá. E veja o que ela fez comigo!

Estava cada vez mais confusa. Mantinha minha sanidade na crença de que tudo podia ter uma explicação perfeitamente lógica.

Enquanto isso, a Sra. Côlson continuava concentrada, sabe Cernunuin em quê, os olhos revirados. Velha louca! O marido prestes a morrer, e ela insistindo em bruxarias primitivas e truques baratos de mágica.

Os eventos seguintes se sucederam tão rápido, que, sempre que tento me lembrar dos detalhes, fico febril.

Quando Shaytan me abraçou, notei, estarrecida, que do ferimento não saía sangue, mas uma gosma amarela e malcheirosa. Seu rosto estava deformado, os olhos pingavam sangue, seus dentes rangiam e ela grunhia como um urso raivoso. Ela me prendeu em seus braços, num torniquete inescapável.

- Deixem-me ir ou eu mato, mato, mato – ululava, me apertando mais e mais. Eu não respirava. Uma das minhas costelas se quebrou, e eu fui perdendo os sentidos, sufocada.

Nesse momento, o Sr. Côlson, num movimento convulsivo e estertorante, avançou para nós. Shaytan, ou o que fosse aquilo, me largou para atacá-lo furiosamente. Graças a Cernunuin não me lembro de muita coisa, mas ficou registrada a selvageria de Shaytan, pisoteando e rasgando o corpo do Sr. Côlson.

E a Sra. Côlson, o que fazia enquanto o marido era massacrado? Nesse átimo de distração de Shaytan, ela lhe perfurou os olhos com o atame e, num gesto certeiro, terminou de cortar-lhe o pescoço.

A criatura desabou no chão, misturando aquela gosma amarelada ao sangue do Sr. Côlson. Olhei o corpo


mutilado de Shaytan, novamente uma adolescente de cabelos cacheados e sorriso deslumbrante, agora enrijecido pela máscara da morte.

Minha mente dava voltas. Monstros não existem. Sou muito racional. Por que Shaytan tentara me matar? Como podia... tudo aquilo?

Estava em choque, sem ar, semidesmaiada, as costelas doendo. Acabara de ver o assassinato de uma adolescente que eu indicara àquela casa e a morte sanguinolenta de um homem. Tudo ficou borrado. Acordei numa cama de hospital.

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Quando comecei a contar essa história, eu visitava a Sra. Côlson na prisão. Sempre ia lá, tentando, acho, entender o que acontecera naquela tarde. Acho. Era ela uma assassina fria e louca? Ou, realmente, salvara a minha vida? Na verdade, não acho nada. Só procuro, mas nunca encontro.

- Srta. Nilx, não quero mais vê-la. Aqui você não vai encontrar respostas. A paz que você deseja está na crença de que existem coisas que vão além da razão. Está em não negar o que você presenciou. Demônios existem e nós, Adoradores de Gaiamund, temos a missão de combatê-los.

Ela se levantou.

- Aceite o inexplicável. Você não me deve nada. Eu e o Sr. Côlson cumprimos com a nossa obrigação de matar um demônio e salvar a vida da senhorita.

Mas eu não saí. Baixei a cabeça, humilde.

- Tenho pesadelos. Às vezes entro em desvario e fico febril. Minha vida nunca mais foi a mesma.

Ela fez um sinal para uma das guardas, e foi embora.

Uma mão suave tocou meu ombro. A guarda, enorme, feições severas, ofereceu-me um objeto, uma placa redonda, de prata, incrustada de dizeres na língua de nossos ancestrais.

- Tome. Vai te proteger de ataques e pesadelos.


Peguei, hesitante, mas devo confessar que imediatamente me senti melhor.

- Os demônios são muitos, mas nós somos mais. E temos a Deusa do nosso lado. Vá. Vá viver sua vida. Um dia, quem sabe, você nos procure.

Outra Adoradora de Gaiamund! 

Fui embora, aliviada. Talvez fosse hora, mesmo, de ver o mundo com outros olhos. Afinal, racionalmente, eu não podia negar tudo o que vivi naquele dia.

Adoradores de Gaiamund... talvez sim, talvez eu os procure. Qualquer coisa para entender de maneira lógica. Sou muito racional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários

Erica disse…
Escolheu bem o texto para uma sexta-feira 13! BUUUU!
Anônimo disse…
Finalização perfeita para uma sexta-feira 13!
O pior é que o Brasil atual está parecendo Gaiamund. Temporais, enchentes, incêndios, seca de rios. O que era um País exuberante, cada dia mais devastado!
Pelo visto estamos também com demônios! O que mais nos aguarda e como vamos destruir os demônios cada vez mais atuantes aqui!
branco disse…
Sempre o crescendo.... E uma vertiginosa sequência de acontecimentos, fatos e cenas que , sinceramente, é para deixar o leitor sem fôlego. Maestria narrativa feita por uma maestrina. Lady killer no seu melhor !
Marcio disse…
Noite de sexta-feira, 13, e eu assumo o risco de ler a segunda parte do texto que já havia me deixado assustado há duas semanas. Não foi por falta de aviso...

Eu até que estava conseguindo manter as aparências, mesmo morrendo de medo do que vinha à minha imaginação, enquanto lia.

Mas, quando eu fui correndo a página para baixo, aparece a imagem daquela bruxa de olhos azuis esbugalhados. Não deu para segurar o cagaço, e foi perda total na cueca.

Agora, totalmente destituído de autoestima, vou precisar desver aquela imagem perturbadora, se quiser dormir um pouco nesta noite.
Nadia Coldebella disse…
Sexta-feira 13, um bom dia para matar, morrer ou aterrorizar... Maravilha de texto, querida Zô. Com seus personagens, vc está construindo um universo Zorayano muito, muito interessante! Que venham muitas sextas como essa, para que nossa Lady Killer continue fazendo o q faz de melhor: justiça mortal.
Jander Minesso disse…
Seus textos costumam me levar lá para o fim da infância e começo da adolescência, quando lia livros de mitologia e manuais de RPG recheados de criaturas macabras e fantásticas. Os Rakshasa (na grafia que aprendi) eram dessa sorte de criaturas. Então, obrigado pela história e também pela viagem ao meu passado. Apesar de tétrico, sempre é um belo passeio.
Jander Minesso disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Albir disse…
"Um empalado que continuava de pé!!!" Sim, claro, pra que cair, por que morrer? Não precisa...
Os demônios são muitos, mas são pets comparados com a irmandade da pá. Acabam trocando de profissão ou fazendo acordo de convivência. Quem sobrar, verá!
Fico sempre admirado com sua capacidade de criar realidades e nos levar pra dentro delas rapidamente Zô! E adoro o seu uso de palavras como "desgracento". Sem falar na riqueza dos detalhes sórdidos e no ritmo da narração, absolutamente envolvente!

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