O FUTURO NÃO VAI MAIS DESFILAR NO CARNAVAL<< SORAYA JORDÃO
O despertador tocou. Douglas esticou o braço, tateou a mesinha de cabeceira até bater no relógio. Enquanto isso, avaliava se merecia dormir mais cinco minutos. Não, não poderia chegar atrasado. Estava voltando de férias e tinha muita nota fiscal para emitir.
Levantou-se ainda sem saber se sorria para as lembranças da viagem a Buenos Aires ou se franzia a testa para as doze parcelas que o aguardavam no futuro. Teve uma tonteira forte. Sentou-se na cama. Deve ter se levantado rápido demais. Pensou no trabalho acumulado, na reunião de retorno com o chefe, na mala que não desfez.
Não ligou para Nana, não almoçou com a Rafa, não encontrou Viny. Estava mais ansioso do que o habitual. Podia ter levado o presente do afilhado, mas aquele mal-estar no final da tarde de ontem atrapalhou seus planos. No final de semana, resolveria isso.
O tempo é um sujeito ordinário.
Saiu de casa atrasado, meio nauseado, nem tomou café. Pegou o metrô, vagão lotado, suor descendo pelos braços, boca seca. Tentou se segurar no ferro perto da porta. O mundo girou. As vozes sumiram, a manhã escureceu. Quando deu por si, uma senhora o abanava, alguém esfregava álcool gel no seu nariz. Não sabia quantas estações já tinham passado.
O tempo é um sujeito dissimulado.
Chegou a se questionar se o voo de Buenos Aires para o Rio tinha mexido com seu labirinto. No sábado iria na UPA, depois levaria o presente do afilhado. Há três semanas não via o menino. Mais tarde ligaria para matar saudades. Lembrou das parcelas que o aguardavam. Agora, tinha que correr. Não podia chegar depois do chefe.
O tempo é um sujeito traiçoeiro.
Por que não dormiu mais cinco minutos? Melhor não reclamar. A sorte decidiu lhe ajudar. Conseguiu a promoção, voltou para a direção de harmonia da sua antiga ala. Mal podia esperar o retorno dos ensaios da sua escola de samba. Esse ano será diferente. Vai reclamar menos, se permitir mais. A viagem serviu para perceber que precisava ser mais confiante. Outra tonteira, mais outra, mais uma. Chegou no escritório. Quando se olhou no espelho, parecia a neve argentina. Viveu tudo o que quis naqueles sete dias. A verdade é que B.A. era seu lugar no mundo. Tomou coragem de ser quem era. Estava sem notícias da Montenegro. Queria ir ao show do Jao, do Jay Vacker e do Júnior. Com que dinheiro? Riu dos seus planos. Foi chamado na sala do chefe. No retorno, se escorou nas paredes. Ainda estava em jejum, talvez fosse isso. Botou sal na boca. Se conseguir entregar as NF’s até amanhã, vai na UPA na quarta-feira.
Hora de ir embora. O metrô pareceu mais distante do que o normal. O caminho até em casa girava em sua cabeça. Abriu a porta. Uma tonteira mais forte. Tentou achar o sofá, coração acelerado, camisa molhada de suor. Chão.
Nunca tinha visto o rosto da sua mãe tão de perto. Não estava sozinho como sempre achou que estivesse. E o presente do afilhado? E a Nanna? E a Rafa? E a escolha do samba? E o desfile? As NF’s? E Montenegro? Nem contei da viagem. E o que eu não disse? O que não fiz? E o rodízio de japa? Peraí, não conheci Londres. Não consigo voltar. Alguém sabe o que está acontecendo?
— Lembra que você foi um homem bom. Segue a sua luz. Sua avó te espera!
A última palavra é a da máquina no hospital 89, 111, 89, 55, 32, 20, 000
O tempo é um sujeito desonesto.
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