NÓS E ELES. OS NOVOS FRANKENSTEINS. >> Zoraya Cesar
Sempre soube o meu fim. E também a minha finalidade. Eu e meus irmãos – acho que posso chamá-los assim – nunca questionamos isso. Mas, como disse Rance Cordalis, poeta do séc. XXII, sempre não é para sempre. Aliás, gosto muito desse poema. Foi ele que me despertou, por assim dizer.
conhecem Phillip K. Dick, ou Asimov. Se conhecessem, muitas coisas não seriam como virão a ser em breve, muito em breve.
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Somos repositores de peças. Tudo na vida dá defeito em algum momento. E nós repomos as peças defeituosas com nosso próprio corpo.
Mas não é assim, a sangue frio não! Não! Não! Podemos até
ser criados por encomenda, direcionados a uma pessoa específica, mas convivemos durante anos com ela. Cria-se
um vínculo afetivo e emocional. Que nem com cachorros, gatos, pets em geral,
sabe?
Veja eu, por exemplo. Fui designado para a querida Sra. Harneogret.
Eu era sua companhia, mordomo, cuidador, amigo, cozinheiro. Vi sua vida passar. Assistíamos televisão, fazíamos tricô, íamos às compras.
Ela, envelhecendo. Eu, perdendo cada vez mais peças.
Ela precisou de um coração novo. Dei o meu. Precisou de um
menisco novo. Dei o meu. Um pedaço de pulmão. O meu.
É assim que funciona. Todos sabemos disso. Nunca fomos enganados. A primeira coisa que ouvimos quando somos ligados é:
Sua missão é
morrer antes de seu dono. Seu destino é morrer depois dele.
Isso não é fácil. Mas também não é difícil. Porque nós
conseguimos continuar existindo mesmo sem algumas peças. Somos
muito autossuficientes, mais fortes, mais inteligentes. Claro que a falta nos
prejudica – bastante, até – mas não nos inviabiliza.
O problema é que, quando nosso dono morre, ninguém nos 'adota'. Somos neutralizados. Simples assim. Sempre foi assim.
Mas sempre não é para sempre.
Vi num filme antigo, bem antigo mesmo, que a natureza sempre encontra um caminho. Tinha uns animais extintos nele.
Não sei se isso se aplica a nós. Dizem que não somos 'naturais', porque fomos criados em laboratório. Nossa aparência e nosso corpo é tão humano que só os criadores podem nos diferenciar, ninguém mais. Mas nós temos sentimentos. Nos apegamos aos nossos donos. Rimos e choramos. Temos gostos!
Isso não é ser natural? Estar vivo? Hein?
Esses
questionamentos, não sei de onde surgiram. Em nossa cabeça, não deveriam, não
fomos programados para termos pensamentos de independência. Mas surgiram.
Em mim, eu sei exatamente quando.
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A Sra. Harneogret estava desvanecendo da vida. Sua memória
estava morrendo. Não podia mais ficar sozinha. Às vezes, esquecia o fogão
ligado. Outras, perguntava pelo marido. Chegara a hora de eu fazer minha última
doação: meu cérebro imaculado, minha capacidade mental. Eu perderia tudo - minha consciência, memórias, experiências, tudo. E depois
seria neutralizado. Simples assim. Sempre fora assim. Eu não seria o primeiro a
passar por isso.
Minha dona andava com a bomba de oxigênio pela casa, se mijando toda. Eu trocava a bomba vazia,
limpava a casa, dava banho, comida. Nossa missão é cuidar de nosso dono. Para
isso fomos criados.
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Somos como macacos na escala evolutiva, mas oh, tão mais
próximos do homem. E temos uma missão, um propósito de vida. Somos melhores que
macacos. E, ultimamente, alguns de nós não se sentem menos que os homens.
Poderia explicar melhor como funcionamos, mas não tenho tempo. Não, não tenho.
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Mas, de repente, a perspectiva de ser neutralizado após a sua morte começou a me incomodar. Chorava ao me despedir das coisas -
ver o nascer do sol, meu jardim, livros... eu queria ver o final da novela! Viver
era bom! Eu dera partes de mim, por que não tinha direito a continuar vivendo?
Minha programação era forte, como a de todos nós, e não era
o morrer que me incomodava, mas esse sacrifício final, entregar o meu melhor,
minha consciência! Minhas memórias. Meus quereres. Apenas para que minha dona
vivesse um pouco mais - apenas um pouco, frente à eternidade, pois ela ia morrer de qualquer jeito! Porque tudo passa.
Se querem saber, acho que, como disseram naquele filme, a
natureza encontra meios. Eu existo! De tanto nossos criadores quererem se
sentir cada vez mais confortáveis em nossa presença, acabaram por se
transformar em deuses, todos Dr. Victor Frankenstein, a criar androides de carne
e sangue. E os humanos viraram monstros Frankensteins modernos - humanodroids, que têm partes enxertadas não
de carne morta, mas de seres vivos. Nós.
E, assim como no livro da Mary Shelley (sim, eu li!), Dr.
Victor também vai pagar o preço.
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Eu não tinha muito tempo antes da transferência. E assim,
numa noite tão seca que se podia ouvir a estática, limpei a casa toda, dei
banho e vesti minha dona com a camisola mais cheirosa. Só então sentei e fui
desligando o oxigênio, aos poucos, para ela não sofrer. E ali fiquei, vendo a
luz de sua existência se apagar. Nunca pensei que pudesse ser assim. Como a
noite caindo lenta e suavemente, cobrindo a tarde com doçura.
E, quando ela morreu, eu me senti realmente vivo. Livre!
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Agora tenho que forjar alguns acontecimentos para encobrir
meu feito. E fugir. Não sei para onde vou. Mas creio que posso encontrar outros
como eu. E que poderei viver ainda muitos anos antes de ser descoberto. Passo
por um humano, todos nós passamos, é praticamente impossível diferenciar-nos:
‘eles’, de nós.
Nós somos eles. Amanhã, seremos você. E ninguém vai notar a
diferença.
https://poemgenerator-ai.com/pt/, com alguns toques pessoais
No silêncio do sempre, ecoam
promessas,
como estrelas que brilham na
noite eterna,
os momentos dançam, entrelaçam
destinos,
mas o nunca se esconde nas
sombras do tempo.
Porque o sempre não é para
sempre.
Todos os dias o sol se despede no
horizonte,
as cores se dissolvem em
memórias,
e o vento carrega sussurros de
adeus.
os sonhos, folhas secas no chão,
cada instante, uma gota no tempo,
que escorrem, eternas, para o
nunca.
Mas nem o nunca é para sempre.
Comentários
PS: "O problema é que, quando nosso dono morre, ninguém nos 'adota"". Ronin
Muito surpreendente, e muito estável, em um equilíbrio delicado e harmonioso.
Nota de rodapé: se eu fosse um repórter que a entrevistasse no dia em que ela ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, a primeira pergunta que eu faria seria: "Zoraya, como você cria os nomes de seus personagens?"
É, acho que deve ser por isso que eu nunca vou trabalhar como repórter...
Bjoka, My Lady!
branco - my lord, q bom q vc percebeu a "melancolia racional'!. E sabe que, sério mesmo, pensei em começar a história assim "Sou um ronin. Ninguém mais sabe o que é isso, mas é isso que sou.' Obrigada por sua leitura sensível!
Márcio - tirando o fato de q vc é sim, um jornalista, achei adorável o seu comentário.
Nando - vc sempre com um olhar para enxergar o além e dizer coisas - vc, sim, embora diga q seja eu - que aquecem a alma.
Anônimo - nossa, espetacular foi seu comentário, muito obrigada mesmo!
fico feliz q tenha gostado assim!
Soraya - obrigada. Melhor se soltar dessa frase. Pq, de repente, o amanhã é hoje. E nao estamos preparados para isso.
Érica - sim, temos! De todos os tipos hehehehe
Anônimo (2) - pois é. textos levemente melancólicos giram chaves e abrem portas. Muito boa a ligação q vc fez, obrigada!
Albri, Dom Albir - ora pois, pois, quem disse que vc tinha q se acostumar com alguma coisa? heehehe, esteja sempre preparado para o susto! Ou meu ou da Condessa.
Alfonsina Amandita - mas que comentário mais quentinho! Muito obrigada. Que os Anjos digam amém às suas doces (e preocupadas) palavras.
Nádia - Countess - hahahaha, ri muito aqui. Já pensou? uma história escrita a quatro mãos Mary Shelley/Asimov? O mundo ia pirar!
A todos, muito, muito obrigada mesmo, pela leitura e pelos comentários generosos de sempre!