AS VELHINHAS DO 5º ANDAR – 1ª parte >> Zoraya Cesar
O prédio, em estilo art déco, era muito bem conservado. Seus
moradores, nem tanto. Pois, por uma estranha gestão - do destino, talvez -, acabou
que só havia gente idosa morando lá. Gente idosa, gente muito idosa e gente
idosíssima.
Era um asilo? Não! Era um prédio de apartamentos com fachada
bonita, unidades espaçosas (dois por andar!) e um denso bosque em redor, longe
da cidade. Tá, ok, parece um asilo. Talvez fosse. Mas não se atenham a esses detalhes,
vamos à história.
Havia um Cel. Átila O'Hunon, uma Sra. Mascarpina, um Sr. Lusurine,
um Dr. Drinkall. E, acreditem, uma D. Violeta e uma Srta. Rosa. E outros. Mas
eu queria mesmo era falar de duas senhorinhas, tão antigas no prédio que,
alguns desconfiam, estavam lá antes de a primeira pedra ser edificada.
D. Herotildes e D. Julineide. As duas inimigas mais mortais,
ferozes e incansáveis que alguém poderia ter. A sorte é que elas se odiavam
tanto, que não sobrava ódio para mais ninguém. O azar é que eram vizinhas de
porta. As velhinhas do 5º andar.
O cargo de síndica e o de fiscal de contas era alternado
entre as duas. Parecia a República do Café com Leite. Ou o reinado do Lorazepam com Losartana. Bem, o que
importa mesmo, no entanto, é que sendo síndica uma, a outra lhe fazia oposição
acirrada.
- Queria sugerir a construção de uma piscina na...
- Tá louca? Tá querendo afogar quem? Ou matar todo mundo de
dengue?
- Ninguém vai morrer afogado. E não vai ser água parada. É
para hidroginástica e...
- Só você, sua lampreia escamosa, faz hidroginástica aqui.
Advogando em causa própria.
- Só porque a senhora não é chegada a uma água pelo corpo
não significa que os outros tenham de tresandar a porco morto também.
- Sou chegada a um banho sim, sua papagaia depenada, o que não sou é chegada a gastos inúteis. E sei bem a água que você gosta, é aquela que passarinho não bebe, sua piolho de guaxinim.
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- Gostaria de pontuar que seria interessante que o
jardineiro contratado fizesse crescer as flores, em vez de matá-las.
- O jardineiro foi indicação de um condômino, até a senhora
aceitou a contratação.
- Não interessa. Os canteiros estão parecendo a superfície
lunar. Da lua, explico-me.
- Sei muito bem o que é lunar – bufava a adversária - sei
muito bem o que é lunar. Tenho faculdade.
- Pois acho que suas faculdades estão mais erodidas que o
canteiro.
- Nosso canteiro está passando por reforma e vai ficar
lindo. Já não posso dizer o mesmo da senhora, sua vampira de esgoto.
- Euuuu, vampira de esgoto? E o que falar de você, sua falha
da natureza?
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- Que vizinhos, sua marmanja de alcova? Você é minha vizinha
e meu gato tem é medo de você.
- Trate de dar um jeito nele.
- Melhor dar um jeito nessa sua cara mais feia que a caratonha de um encosto.
- Esse filhote de satanás não me deixa dormir.
- E desde quando zumbi dorme?
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E os outros condôminos? Como reagiam a esse entrechocar de lâminas
e línguas afiadas bifurcadas?
Ora! As reuniões eram concorridíssimas – pelos que tinham ânimo a ficar acordados até as 8 da noite, bem entendido. A diversão era garantida. Sempre rolava uma pipoca (mas depois que o Sr. Oldemais engasgou e quase morreu, suspenderam a pipoca e trocaram por biscoitinhos amanteigados) café, chá e, ocasionalmente, um bolinho e oh, glória das glórias, um licorzinho de caju preparado pela D. Herotildes ou um de abóbora, preparado pela D. Julineide. Escusado dizer que nenhuma provava o da outra. Feito com água do Estige, dizia uma; preparado à base de esgoto do Ganges, dizia outra.
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De vez em quando, como acontece em
qualquer parte do mundo, lá também morria alguém. Como eram todos velhos, e
muitos tinham comorbidades, não se fazia muita quizumba em torno do caso.
Morreu, tá morto, chorava-se um pouco quando o defunto merecia e vamos colocar
logo outro condômino, para não pesar as contas. Se uma ou outra morte pudesse
soar estranha, ninguém nunca se manifestou publicamente. Os parentes vinham,
levavam o corpo e assunto enterrado. Se não havia parentes, o corpo era levado
do mesmo jeito. Afinal, lá é que não podia ficar, não é?
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Agora, uma explicação necessária,
pois sei que vocês já devem estar se perguntando: por que a hegemonia das velhinhas
do 5º andar nunca era contestada?
Por conta de uma questão legal
complicada: os maridos das duas contendoras foram (que Deus os tenha. Ou o
Diabo, a gente nunca sabe) amigos na juventude. Compraram o enorme terreno por
uma bagatela e construíram todo aquele complexo. E estatuíram que, enquanto uma
delas fosse viva, haveria alternância no comando do condomínio e na
fiscalização de contas. E depois da morte? Ninguém – e, desconfiava-se, nem
elas - sabia.
Os dois ou três que, ao longo dos
longos anos, tentaram fazer alguma objeção, tinham morrido. Mas não estou levantando
suspeitas de nada, vejam bem. Naquele lugar a morte era algo natural. Não me
comprometam.
Em que momento as duas começaram a
se estranhar até virarem inimigas juradas, ninguém sabia também. Todos os que
lá moravam já as conheceram assim. Pra que questionar? Não se mexe em time que
está ganhando.
Sim, pois, por estranho que pareça,
tudo funcionava às mil maravilhas, todos estavam mais que satisfeitos com o andamento
das coisas; e estavam velhos demais para ficar questionando cláusulas antigas.
Tinham mais o que viver, enquanto tinham tempo, que ficar se preocupando com
firulas. E, como disse, as reuniões eram animadíssimas.
Havia os partidários de D.
Herotildes e os de D. Julineide, claro. Mas havia, também um equilíbrio entre as
forças.
E la nave vá.
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E la nave ia.
Porque teve um dia que (e não me canso de repetir, sempre ‘tem
um dia que’), após a morte insuspeita de um morador, chegou uma nova habitante.
Era tatarasogra, ou algo assim, de um dos administradores do local, que, doido
para se ver livre daquela pústula de furúnculo fétido, pedira, de joelhos mesmo,
para que as velhinhas do 5º andar a aceitassem como nova inquilina. O que ele prometeu
em troca, creio que só os guardiões do inferno sabem.
D. Cotinha chegou. E todos, um desequilíbrio na força
sentiram.
Continua dia 24 de maio
---- Agradeço demais a ajuda de meus amigos Marcio Humor Rascante Figueira e Raul, o Sam Elliot das Gerais, pela compilação de xingamentos entre as velhinhas do 5o andar. Como eles descobriram, não sei. Não me comprometam. Não quero virar queima de arquivo.
Comentários
Não tem cafezinho nem biscoitos.
Talvez seja um estratagema frustrado para abreviar as reuniões.
E as discussões não têm humor (em duvidosa compensação, sobra mesquinhez).
Será que tem vaga para mim nesse prédio? O aluguel e o condomínio são baratos?
Curiosa pra saber qual das velhinhas irá matar... ou quem elas matarão hahaha
Márcio - nesse condomínio sempre tem lugar pra gente boa. O aluguel não é barato, mas é negociável.
Nando - pega a Leila e venham antes dos 90. Garanto q será divertido.
Ana - espero, realmente, q vc nao perca por esperar! Depois me diz.
Jander - ah, Jander...
Sergio - hahaha, mas que coisa! Pq vc acha q alguém vai morrer?
Clara- hahah anota aí! Se nao surgir oportunidade, cria uma! Esses epítetos merecem!
Érica - vc é outra, q sempre acha q vou matar alguém. Cruzes! (heheheeh)
Soraya - acho q um dos condôminos usa!
A todos, muito obrigada mesmo!
Vc sabe que eu leio às gargalhadas, né, Lady? Nesse exato momento estou no trabalho, aproveitando pra ler, porque tomei um bolo do atendimento que ia fazer. Acabei de emitir duas gargalhadas bem sonoras por causa da briga entre as oldmeliantes e uma criatura bateu na minha porta, pedindo se eu tava bem. Eu tive que me fazer de séria, rindo por dentro...
Agora vou para a parte dois. Estou levando a pá e aguardando as mortes.
bjka