MUITO ESPERTO >> Albir José Inácio da Silva
Às dez da noite, brincando de
pique, pouco antes de ser quase arrastado pra dormir porque tinha aula cedo no
dia seguinte, fui informado, ou melhor, lembrado, por uma colega cheia de
sardas, que o trabalho sobre Caxias era para amanhã. Embora não cumprisse
todas, a professora era pródiga em ameaças, quem não fizesse o trabalho ia
ficar com nota vermelha.
Meu pai me considerava ótimo aluno
e muito esperto. Eu não acreditava no “ótimo aluno”, mas me orgulhava do “muito
esperto”. Por isso, nessas enrascadas escolares, meu cérebro trabalhava rápido
em soluções rápidas e baratas.
Busquei possíveis desculpas, mas
lembrei da cara da professora e desisti. Pensei em faltar à aula, mas uma consulta
à mãe mostrou que não seria possível por causa da proximidade das provas. O
recurso às doenças não andava num bom momento. Na semana passada pretextei dor
de cabeça para faltar à aula e no meio da manhã estava envolvido numa pelada
que durou até a hora do almoço. Pegou muito mal.
A esperteza me sugeriu improvisar
alguma coisa com recortes, citações heroicas e letras desenhadas. Assim
liquidava a fatura em meia hora, e aquele seria o golpe mais fácil que daria na
professora.
Trabalhos de escola eram feitos
em cartolina. Alguém ainda sabe o que é isso? Nem armarinhos em que eu comprava
cartolina existem mais. Era domingo, mas por sorte eu tinha a cartolina de um trabalho
anterior que não fiz por providencial dor de garganta. A professora avisou que
da próxima vez não tinha desculpas.
O tema era Duque de Caxias e a Guerra
do Paraguai. Gastei muito tempo desenhando a lápis as letras do título. Ficaram
muito sem vida e passei a caneta por cima. Às duas da madrugada o título estava
pronto. Mas percebi que o Caxias estava com CH.
Havia uma borracha de duas cores,
azul e vermelha, que diziam que apagava tinta de caneta. Todo mundo sabe que
não só não apagam como rasgam a folha, mas eu não tinha opção. Parei antes de
chegar ao outro lado. Ficou feio, uma cárie logo no título. Eu tinha que
continuar porque a noite não parava.
Fiz dez linhas paralelas e
comecei a escrever um texto sobre a batalhas. Passei bem por Humaitá e Itororó,
mas em Lomas Valentinas a esferográfica, possuída, soltou a esfera, e uma mancha
se espalhou pelo papel.
Qualquer um teria se abatido, mas
o gênio pensou rápido. Recortei impiedosamente um brasão do Império que
brilhava na página do livro e colei sobre a mancha. Felicitei-me dizendo que estava
melhor assim.
Gênios têm grandes ideias,
resolvem problemas, mas não afastam demônios. Ainda não havia cola plástica.
Usava-se uma tal goma arábica, que devia ser produzida no mármore do inferno
árabe. Em poucos minutos a cola reagiu com a tinta, a mancha agora tinha dez
centímetros e variava tons de amarelo, roxo e verde escuro. Virei a folha, quem
sabe, mas a mancha estava lá também.
Às quatro da manhã acordei minha
mãe, no escuro pra ela não ver que andei chorando, e perguntei se tinha outra
cartolina. Ela era mãe, tinha. Comprava a mais porque eu só lembrava de
trabalhos aos domingos.
Às Seis e meia ela me sacudiu - com
pena, porque muito suavemente – e eu gemi porque os braços estavam dormentes
sob a cabeça na mesa da cozinha.
- Ficou bonito! – disse ela
enquanto eu cambaleava para o chuveiro.
O cartaz estava pronto, eu ia
tapear a professora mais uma vez.
Eu era muito esperto. E acho que
ainda sou, porque até hoje faço dessas espertezas.
Comentários
Me vi nesse pequeno "jênio", meu igual, espertissimo!
Tô rindo com a goma arábica feita no fogo do inferno da arábia, um lugar bem específico, aliás, e muito pertinente.
Agora, achei duas dissonâncias com meu eu "jênio" infantil: nunca usei goma arábica e sei onde comprar cartolina até hj. Estranho não?
Obrigada pela leveza do texto.
Gde abraço
Delícia de recordação, Albir!