AS VELHINHAS DO 5º ANDAR - 2ª parte >> Zoraya Cesar
Resumo da 1ª parte: D. Cotinha chegou para desandar o equilíbrio pouco ortodoxo, mas eficaz, do condomínio e acirrar as desavenças e rixas entre as duas velhinhas do 5º andar – inimigas figadais que agora tinham mais uma indigesta para enfrentar.
A
nova moradora infernizava os vizinhos, parecia mancomunada com o capiroto. Implicante.
Ranzinza. E maléfica.
As
reuniões ficaram tensas. Os biscoitinhos amanteigados foram substituídos por
uma gororoba de cheiro inominável, à base de peixe exposto ao sol, que D.
Cotinha, a emissária do Demo, fazia questão de levar, tresandando o salão.
Alguns moradores passavam mal, enjoados com a fedentina. As garrafas de licor sumiam
misteriosamente. D. Julineide e D. Herotildes trocavam acusações acerbas e
rançosas. E D. Cotinha atirava a torto e a direito, numa virulência furiosa e
certeira. Uma mira dos diabos tinha aquela noiva que Asmodeus enjeitara.
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- Quero que sejam arrancadas as malditas papoulas – vociferou D. Cotinha.
- Por
quê, se me permite a pergunta.
-
Não permito e não respondo. Mas eu mesma vou arrancar tudo e plantar boldo.
-
Não tem boldo no mundo que resolva seu hálito de múmia apodrecida!
-
Pois espere e verá, sua flanela de asfalto.
Dito
e feito. Alguns dias depois, o canteiro de papoulas estava cheio de formigas
cortadeiras.
O
que causou o colapso nervoso do Sr. Oldemais, que tinha na jardinagem do
canteiro de papoulas sua terapia. Os condôminos ficaram consternados, não só
porque gostavam muito dele, mas também do remedinho à base daquelas flores que
ele manuseava para os insones.
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- Você
aí, doutorzinho drinktud.
- É
Dr. Drinkall, minha senhora.
- Tanto
faz. É com você mesmo. Aliás, doutor em quê? Em birita?
Silêncio
etílico. Todos sabiam que o bom doutor era chegado em água batizada. Mas todos sabiam
que não era ele que roubava as garrafas de licor.
-
Exijo que pare de levar seu cachorro imundo na praça do condomínio. Ele come
minhas folhas de carqueja.
D.
Julineide interveio.
- O
cachorro é mais educado que a senhora, lápide de enforcado!
- E
você, pedaço rejeitado de Frankenstein!
Mas
o fato é que o pet entrou em coma de repente, depois de ter comido algo que
crescia junto aos pés de carqueja.
Dr.
Drinkall trancou-se em casa, deprimido. Para angústia generalizada, pois o bom
doutor ainda era um doutor bom e clinicava alguns moradores extraoficialmente, com
bastante sucesso, por sinal.
---
-
Os corredores estão cheirando a mijo. Os elevadores também.
-
Como assim? A senhora mora no térreo, não pega elevador. E os corredores são
exclusivos dos moradores do andar.
- Tá
tudo cheirando a mijo! – teimava D. Cotinha batendo com a bengala na mesa,
fazendo os velhinhos estremecerem – O Sr. Lusurine devia trocar as fraldas
geriátricas dele com mais frequência.
- O
Sr. Lusurine é um lord! Cheira a banho tomado, não como a senhora, mais
catinguenta que bucho de jumento estripado.
-
Eu cheiro muito bem, sua seborreia de Medusa.
- Cheira
a carniça que nem urubu chega perto!
Infelizmente,
mesmo não tendo culpa nas fraldas, o Sr. Lusurine, vexado, só saía escondido,
tarde da noite. Mas D. Cotinha, de tocaia, sempre o surpreendia e ficava a
gritar fedentino, mijento, urinol ambulante. Não adiantava fugir, a velha,
mesmo com os joelhos tortos de artrite, corria mais que galinha esganiçada.
Não
sei o que os jogadores de biriba lamentaram mais, se a ausência do parceiro ou das
cervejas que ele levava para o jogo.
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E la nave afundava. Moradores humilhados, pets adoecendo misteriosamente. Lixo amanhecia na porta
dos vizinhos. O lago, envenenado por algas tóxicas, transformou-se num túmulo fétido, os peixes boiando como estrelas prateadas caídas de tristeza. Laxantes eram dissolvidos no bebedouro dos passarinhos. Dezenas de árvores desfolharam-se, como que atingidas pelo infame agente laranja.
Ninguém
podia provar nada, a velha era mais esperta que Loki, mas todos sabiam,
simplesmente sabiam, que era D. Cotinha.
A
coisa andava de mal a pior – ou melhor, sendo todos velhinhos, a coisa manquitolava
de mal a pior que o pior.
O prédio
e os arredores se deterioravam rapidamente. E o cemitério, do outro lado do
morro, aguardava o próximo morador.
D.
Cotinha sentia-se ‘em casa’: conseguira transformar um quase paraíso particular
num terreno assombrado, decadente e árido como ela.
Só
faltava uma coisa. Reinar.
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E o
que faziam os moradores? D. Herotildes? D. Julineide?
O
que podiam. Corriam atrás – perdão, corriam não, eram todos velhos (perdão
novamente: idosos). Afe! Recomecemos.
E
os outros, o que faziam? O que podiam. Capengavam atrás do prejuízo.
Até
que um dia o papagaio alegre e falador do Cel. Átila O’Hunon voltou depenado de
seu passeio vespertino. O coronel, homem forte, ainda fazia os calistênicos que
aprendera no quartel. Caladão, não arranjava treta com ninguém. Mas nessa noite
ele perdeu o controle, certo? Não. Bateu no 5º andar e disse: ‘agora basta’.
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Na
reunião seguinte, todos estavam alterados e alvoroçados por conta dos últimos
acontecimentos e preocupados em reverter a decadência galopante do condomínio. Dentaduras
caíam, peidos saíam, gargantas engasgavam, fraldas molhavam, andadores não
andavam. O caos. Só a bengala de D. Cotinha mantinha-se firme. Mesmo na
barafunda conseguiu passar seu recado: iria contestar na justiça a hegemonia do
licor de caju e de jenipapo para entronizar o reinado do chá de boldo.
A
mulher tinha idade para ser a mãe de Matusalém, mas o ânimo de mil beduínos
enfurecidos. Depois dizem que o mal não compensa.
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Após
a reunião, uma das velhinhas do 5º andar ligou para o desgramado do
administrador que implorara para aceitarem a maldita Cotinha no condomínio. O
que eles combinaram não sei nem quero saber, outros condôminos já morreram ali
por saberem de menos, que dirá de mais.
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(Na
noite anterior à reunião, um morador, de luvas e máscara, escancara suas
janelas e começa preparar um licor especial, na esperança de que fosse, mais uma
vez, roubado. No bosque desfolhado, ouvia-se o pio lamentoso de uma coruja
solitária que não encontrava nada para caçar.)
Um tumulto
discreto ocupou a madrugada após a reunião. Conversas abafadas, pés batendo
tlectlectlec, portas rangendo, móveis sendo arrastados. E o som de um carro
sendo carregado e partindo. Ninguém ousou levantar para ver o que acontecia.
Para muitos, tudo não passou de um sonho dentro de um sono mal dormido. Para
outros, tudo parecia obra de fantasmas e demônios mal apaziguados, credo em cruz.
Para todos, no entanto, o dia trouxe boas notícias.
D.
Cotinha morrera durante a noite. “Levamos o corpo logo para não assustar ninguém”,
explicou a síndica. No apartamento, encontraram as garrafas de licor roubadas,
vazias, inclusive a da última reunião. Coma alcoólico e ataque apoplético foram
as teorias mais apostadas. Alguns bem que reconheceram as diversas lacunas e
fatos mal explicados daquela história, mas calaram-se. Assim como eu, acreditam
que é melhor ser um velho vivo que um esperto morto.
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Rapidamente
a normalidade se restabeleceu. O administrador, num assomo de bondade bastante inexplicável,
arcou com a recuperação do prédio, lago, bosque, tudo, inclusive pavimentou a
estrada que levava ao cemitério
Os
xingamentos de praxe e os biscoitinhos amanteigados voltaram às reuniões. Os
licores também, mas nem todos bebiam (aqueles que lembravam da morte estranha e
mal explicada de um ou dois condôminos cujos corpos ninguém jamais vira).
Creio
que chegamos ao final feliz, mas como ninguém gosta de soluções ex-machina,
vamos dar uma espiadinha muito discreta no 5º andar.
Num
dos apartamentos, D. Julineide e D. Herotildes colocam a mesa do jantar. O Cel.
Átila O’Hunon beberica um bourbon e coloca Glenn Miller na vitrola (é,
vitrola!).
Ouçam
com atenção a conversa, e descobrirão que as duas arqui-inimigas são, na
verdade, as melhores amigas desde a juventude. Toda aquela hostilidade, uma
fachada, num arremedo de ‘dividir para conquistar’, de Júlio Cesar. Que, em
casos extremos, bem, o cemitério está sempre de portas abertas. Que foram
amantes fieis e fogosas do coronel e ainda hoje... ei! Não sejam indiscretos!
Continuem ouvindo e descobrirão, também, que o licor fora ‘batizado’ com mancenilha, D. Cotinha estava condenada. Que o coronel, longevo em anos, mas forte como um touro premiado, incumbia-se de dar sumiço ao corpo (corpos?). E que o administrador estava muito agradecido por terem-no livrado da sua tatataravó consorte de Satã.
Vamos
jogar pôquer. Quem dá as cartas? Você, sua biscateira de barranco. Pode deixar,
cara de baiacu. As duas riem. O coronel sorri. Até que a morte batesse à porta
novamente, o mundo voltara ao normal.
E
saiam logo daí, vocês, antes que elas os vejam. Bora, bora, bora!
Mancenilha - https://pt.wikipedia.org/wiki/MancenilheiraMancenilha - https://pt.wikipedia.org/wiki/Mancenilheira
AS VELHINHAS DO 5º ANDAR - 1ª parte
Comentários
Peidos saiam. Ri muito.
Não perdeu a oportunidade de dar fim à velhinha má. Ainda bem. Se fosse o contrário eu não ia gostar não hehehe
Tô me acabando em pensar nas duas velhinhas melhores amigas e amantes do coronel. Um oldtrisal? Eu bem que suspeitava das duas ancestrais. Mas o coronel foi novidade, se bem que fiquei um pouco frustrada, porque nem precisou da minha pá.
Um grande bjo
Pensando bem, é mais seguro não saber as respostas...
Márcio - ainda bem que vc evitou o grande dissabor de te convidar para um licor...
Anônimo - vc é esperto, mto esperto. Exatamente isso! Agora, se vc estivesse presente na reuniao não teria achado graça nos peidos. Alguns cheiravam pior q a gororoba da D. Cotinha.
Érica - veja bem, eu não dei fim em ninguém. Isso foi lá coisa das Velhinhas do 5o andar e seu Cel. Átila O'Hunon, não me comprometa!
Nádia - desssa vez sua pá não foi necessária, o coronel ainda consegue cavar e enterrar um corpo com maestria. Mas a idade vai pesando mais e quem sabe? Seus serviços podem ser bastante necessários.
Dom Albir - eis outro homem sábio. Melhor nao saber. Lembremos que é melhor um velho vivo que um esperto morto. E, mais uma vez, rindo muito com seu comentário! Acho q vou fazer um livro de citações com seus comentários hehehe
Ferrer - me deixou envaidecida! E ainda me agraciou com uma nova leva de epítetos maravilhosos q vou usar em próximo personagem aparentado de D. Cotinha. hahaha, tb ri muito aqui.
Jander - Jandeeeerrr, uauauauaua, vc na mosca! hahaha, só vc mesmo pra lembrar de Transpotting! Filmaço! aliás, todos os dois. Sim, ele era chegado e alguns condôminos também hehehe
Soraya - leve os amanteigados, mas cuidado com os licores. Muito cuidado.
A todos, meu muito obrigada! Amo sempre
O importante é criar intrigas, caso contrário a vida deles ia ser muito monótona, assim como a nossa vida sem a Zoraya 🥰