IDEIA DE PRESENTE >> André Ferrer
A chuva tinha passado, mas ele resolveu conferir. O céu estava negro e aquilo tudo, lá em cima, despencaria a qualquer momento.
Ele sabia que estava atrasado. Inúmeras coisas minavam a sua vontade. Gente demais na calçada. O peso de uma tempestade sobre a cabeça. O simples fato de estar ali tirava a sua paz. Não bastasse isso, era como se houvesse gelo dentro da sua capa de chuva.
Sentia-se contrariado. Trocava os passos como se marchasse para um matadouro e ainda estivesse perto do ponto de partida — perto da chance de dar meia volta. Não podia voltar. Fez de conta que não existia tempo. Caminhou maquinalmente. Até que alguém o impediu de avançar e foi preciso esquivar-se. Naquele instante, deu-se conta da própria vagareza e aumentou a marcha. Outro homem bloqueou o caminho.
Por alguns metros, foi obrigado a caminhar atrás do estranho. Ele avançou. Tentou desviar. Recuou. Depois, tornou a avançar e pediu licença de um modo indecifrável — um rosnado. Que manhã desastrada! Frio. Gente folgada. Só faltava recomeçar o aguaceiro. Então, o homem abriu passagem. Podia-se andar. Sim. Era ótimo, mas havia muitos outros corpos no caminho. Todos queriam chegar antes da próxima chuva.
Ele aproveitou. Sem reduzir a marcha, levou o braço ao rosto. Conferiu as horas no pulso. Logo a noiva sairia para o almoço. Faltava um bom trecho para caminhar. Pensou: Mais daquelas coisas desagradáveis por aqui: ter que andar tão depressa no meio de toda essa gente, o horário apertado e o emprego dela. Não! Não é só o fato de você trabalhar, querida, é aquele lugar. Eu odeio aquele lugar conforme eu disse ontem à noite.
Realmente, pensar em todas aquelas coisas estimulava a sua vontade de recuar, o que estava fora de cogitação. Avançara demais. Tinha chegado ao ponto da irreversibilidade. Então, apertou o passo. Pediu licença — outro rosnado. A pessoa que bloqueava o caminho devolveu o rosnado. Educadamente, esperava que um casal de idosos vencesse uma escada e perdeu a paciência com o rapaz na capa de chuva que, parado, voltou a rosnar.
Ele se moveu. Tentou pisar na margem da avenida movimentada. Equilibrou-se na guia. Depois, descreveu uma volta ao redor da cena. Procurou algo para segurar. Parou. Como por magnetismo, seus olhos caíram no casal.
Trêmulo, afastou-se. Agarrou uma grade. Mesmo assim, a vertigem aumentou. Ele tratou de segurar com as duas mãos. Continuou a olhar o casal.
Diante da casa, havia uma escada onde dois velhos se opoiavam. Fizeram isso, degrau após degrau, num ritual lento e calculado: quando um estava embaixo, ajudava o outro a descer — o que se repetiu até o último degrau à beira da calçada. Neste momento, um abraçou o outro. Chegaram ao destino afinal. Cada um tinha feito o possível. Então, o bem-feitor aplaudiu, ajudou a abrir os guarda-chuvas e fechou o portão para os velhos. Fora de dúvida, o que protegiam era muito valioso.
Grudado na grade, tentou se mover. Travou. Era como se uma sensação de déjà-vu paralisasse todo o seu corpo, mas logo percebeu que não se tratava de um típico déjà-vu. Há pouco, tinha visto realmente dois jovens, também um casal, ajudando-se da mesma forma na escadaria do teatro. Então, era aquele o motivo da sua paralisia! O casal de idosos e o casal anterior, na escadaria do teatro, bem poderiam ser o mesmo casal só que com muitos anos entre eles. Tal impressão deixava-o atordoado. Era uma sensação brutal de passagem de tempo.
Largou a grade bem devagar. Moveu uma das pernas. Precisava encontrar a noiva. Cambaleou. Então, acertou a marcha. Levantou a cabeça. Situou-se. É a próxima travessa, pensou. Mas que diabo de ventania! Olhou para o alto. A chuva ainda estava lá. Dobrou a esquina. Outra rajada de vento pegou-o em cheio. As bordas da sua capa foram jogadas para o alto.
Mãos unidas, ele apalpou a lona amarela. Tateou em comprimento e achou vários botões abertos. O vento bateu. A friagem cortava o seu abdome. Uma vez mais, procurou os botões. Um deles caíu no chão. Apesar do mau jeito e do frio, ele não parou de caminhar. Arrumou a lona conforme o possível.
Capa fechada, prendeu-a com os braços cruzados. Então, uma nova rajada de vento bateu e ele cerrou os olhos, a cabeça baixa, os braços arrochados. Imediatamente, alinhou a coluna e levantou a cabeça. Depois, abriu os olhos com dificuldade. Reconheceu o caminho: estava perto do trabalho da moça. Foi quando escutou um motor. Um ônibus dobrou na próxima esquina. Ele fez o mesmo.
Do outro lado, havia um muro alto, árvores e um ponto de ônibus onde muitas pessoas aguardavam. Castigado pelo vento, ele caminhou, rente ao muro, na direção das pessoas e tentou animar a si mesmo pensando que faltava pouco. Então, ele sentiu gotas de água na cabeça. Grossas, pesadas, gélidas. Por um instante, achou que a chuva tinha voltado.
Bloqueado, agora por braços e barrigas imóveis, ele se agarrou aos pedacinhos visíveis da criança. Então, rosnou e conseguiu avançar um pouco. Tentava não perdê-la de vista.
Ela estava na outra extremidade da parada de ônibus. Havia um maciço de gente entre os dois. Uma vez mais, o homem estava preso, mas não tirava os olhos da pequena. Tinha uma ideia fixa agora. Então, pareceu-lhe sensato fazer aquilo. Uma boa ideia, pensou. Deve servir. Deve compensar a discussão de ontem à noite. Um gesto digno, realmente, de ser repetido ao longo dos anos.
Às barrigas e aos braços, reagiu. Empurrou as costas de alguém. Os ombros de outro. Deixou um rastro de queixas atrás de si até chegar à menina.
— Qual é o preço das flores?
A pequena olhou para cima e abraçou o ramalhete como se quisesse defendê-lo. Disse: — Eu não vendo. São minhas.
Comentários
Toda vez que eu leio um texto seu tenho a sensação de entrar numa espiral vertical. Vc faz a gente subir em círculos, subir, subir e no final, poft, larga sem dó. É uma sensação muito angustiante, mas compensa. E amo os finais, a quebra da expectativa, geralmente numa frase matadora.
Concordo geral, vc é muito bom nisso.
Gde abç