Vantagens e desvantagens de se morar fora >> Alfonsina Salomão


Uma amiga pediu que eu escrevesse sobre as vantagens e desvantagens de morar fora do Brasil. Moro na França há vinte anos. Sem dúvidas, o que considero como vantajoso ou desvantajoso mudou ao longo dos anos. Mas vou topar o exercício.

 

Quando me mudei, as vantagens eram múltiplas. De um ponto de vista bastante pessoal, me dei conta de que vivia melhor com minha mãe à distância. Tínhamos uma relação muito amorosa, e por isso mesmo me doía vê-la desesperançosa da vida, sem conseguir ajudá-la. Aquilo apertava meu peito. Fisicamente longe, eu sentia que comunicávamos melhor, eu me sentia mais perto dela, sem a barreira da angústia para nos afastar. Conversávamos pelo telefone todos os dias, numa época onde ainda não havia Skype ou Whasapp. Hoje minha mãezinha não está mais neste plano... e meu maior consolo foi ter podido passar um ano ao seu lado no Brasil, num parênteses da minha vida em Paris, quando ela vivia plenamente a doença. 

 

Outra coisa que me afligia quando morava no Brasil, era a miséria das pessoas que moravam na rua. Era dolorido para mim ser confrontada todos os dias à minha impotência face ao modo de vida que estas pessoas levavam, inclusive crianças, dormindo no chão duro, sujeitas a todos os tipos de violência, reduzidas à mendicância, ao desprezo e ao preconceito da sociedade. Foi um alívio viver em um país de primeiro mundo, como dizíamos na época, onde o sofrimento dos outros não era tão evidente. Esta dita vantagem também evoluiu, porque infelizmente o numero de pessoas sem abrigo, como chamamos aqueles que não têm onde morar aqui, aumentou bastante. Franceses, imigrantes, refugiados, homens, mulheres, idosos, crianças... a paleta de seres humanos em situação de vulnerabilidade aumentou bastante em Paris, ao menos aos meus olhos. Num curto trajeto de casa até o trabalho, por exemplo, somos abordados por várias pessoas em diferentes situações pedindo empatia e ajuda financeira. 

 

Isto me leva a outro ponto do qual me dei conta alguns anos após minha chegada: ser branca e privilegiada num país tão desigual como o Brasil era de certa forma insuportável para mim. Aqui sou uma cidadã de classe média como todos os outros, que lava as próprias roupas, faz a própria comida e cria os filhos sem a ajuda de babás. Eu gostava de poder fazer massagens regularmente e ter minha roupa passada sem esforços na casa dos meus pais ? Sim, claro. Mas a consciência de que as pessoas não eram devidamente remuneradas por estes serviços tirava em grande parte meu prazer. Ainda prefiro ser imigrante num país cada vez mais xenófobo do quê rica num país extremamente desigual. Cada um com seus complexos...

 

Comecei falando coisas bastante íntimas e das quais me dei conta ao longo dos anos, mas posso também citar vantagens que já são conhecidas de todos: escola publica de qualidade, sistema de saúde que funciona, transporte coletivo eficiente, etc. Ah, outra vantagem é poder assistir a shows de cantoras e cantores brasileiros conhecidos em salas pequenas. Estar na primeira fila de um ambiente aconchegante e curtir Mateus Aleluia, Moreno Veloso, Marina Senna, Nação Zumbi... para citar apenas alguns concertos que assisti recentemente, não tem preço.

 

E as desvantagens... a falta de sol, o céu eternamente cinza, ao ponto de que minha filha se espantou, aos dois anos, quando, ensinando-lhe as cores, eu disse “o céu é azul”. Lembro que ela me corrigiu: não mamãe, o céu é branco. Os ratos... têm muitos ratos em Paris. O legendário mal humor dos parisienses, com o qual acabei me acostumando, apesar de resistir para não me tornar assim e não deixar que meus filhos fiquem como eles. “Você está parecendo uma francesinha”, digo para minha filha sem muito tato e de modo politicamente incorreto quando ela começa a resmungar. Os apartamentos caros e pequenos, a falta de abraço e contato físico, o fato de me sentir em representação quando vou buscar meus filhos na escola ou converso com os vizinhos, aplicando as formulas de educação no falar e no gesticular. Mas esta sou eu, tenho amigos que fizeram menos esforços de adaptação e talvez sejam mais felizes. “Me adaptei demais”, foi o que pensei depois de uns dez anos por aqui. O problema é que dar marcha a ré não é tão simples. Mas sigo tentando e acho que até com certo sucesso. Ultimamente uso brincos de penas e roupas coloridas, me rebelei contra a ditadura do guarda-roupa chique, cinza e preto das parisienses.

 

Assumir ser esquisita é libertador mas também causa certa solidão. A solidão do imigrante se sente onde quer que ele esteja. No Brasil, me sinto pouco espontânea, distante demais, intelectual demais... aqui sou a louca que ri forte, grita com os filhos no meio da rua, os enche de beijos na frente dos outros, canta e até dança quando caminha sozinha... Entre estes dois espaços vou me procurando, buscando assumir quem realmente sou, se é que isso existe, um eu nosso real. Somos espelhos uns dos outros e distintos em função da situação e do interlocutor. Por isso mesmo, quando somos estrangeiros, desenvolvemos uma capacidade de adaptação aguçada. Viver entre dois mundos requer manejo, obriga a abrir os olhos para novas perspectivas e formas de entender o mundo. Enriquece. Talvez seja esta a maior vantagem de se morar fora, a que me faz, por hora, continuar aqui. 

Comentários

sergio geia disse…
Nossa, devorei seu texto. Obrigado por compartilhar coisas tão íntimas e profundas. É tão difícil e ao mesmo tempo tão bom ser quem realmente se é.
Zoraya Cesar disse…
TExto megainteressante Amandita! Amei, fiz q nem o Sergio, devorei! E tão honesto, tão desnudo! Amei demais. Esse texto tb nos abre novos olhares. E nao nos iludamos. Pessoas q tentam expressar seu eu sempre serão consideradas meio estrangeiras em qq lugar. Até na família...
Jander Minesso disse…
Ah, eu invejei esse céu branco, viu? Mas o que mais gostei foi a franqueza e a humanidade em cada linha desse texto.
Nadia Coldebella disse…
Que texto bacana! Fiquei grudada nele do começo até o fim. É muito legal explorar essas diferenças culturais, né?

Outro dia, uma amiga me falou da síndrome do estrangeiro, algo assim, que é quando um brasileiro vive muito tempo fora e, ao voltar para o pais, não consegue mais se adaptar e vive no meio, entre um lugar e outro. Eu senti isso dentro do Brasil, quando morei no norte (claro que não tão intensamente quanto morar em outro país). Foi estranho voltar e não me adaptei mais, até hoje. Porem a língua ainda salva.

Pessoalmente, acho que transitar é muito legal, não precisa gerar angústia. Não sei se a gente descobre um eu, mas acho uma experiência magnifica pra se conhecer.

Texto maravilhoso, escreva mais sobre.
Albir disse…
Concordo com a Nádia!
Por favor, deixe-nos saber mais! Faça uma série.

Postagens mais visitadas