DE VOLTA >> JANDER MINESSO
– Mãe, cheguei!
– Posso saber onde o senhorito estava?
– No deserto.
– Por quarenta dias?
– Aham. O que tem de almoço?
– Não muda de assunto. Tava com quem no deserto?
– Ninguém. Fui sozinho. Tinha umas paradas para resolver.
– Conta logo quem você foi encontrar, porque se eu descobrir pelos outros vai ser pior.
– Até trombei um cara lá por acaso, mas foi coisa rápida.
– Por acaso. Coisa rápida. Sei.
– Te juro. Um sujeito carente dos diabos que apareceu do nada. Comentei que tava com fome e ele ficou insistindo pra eu transformar uma pedra em pão.
– E você transformou?
– Tô evitando carboidrato. Quero ficar trincado.
– Não é pra sair fazendo milagre a torto e a direito, hein?
– Mulher, você me ouviu?
– Seu pai me mata se souber que você tá fazendo coisa errada.
– Meu pai? Qual dos dois?
– Pronto. Vai começar com essa história outra vez.
– Mãe, se coloca na minha situação.
– Se coloca você na minha situação, mocinho. Primeiro, seu pai mandou recado dizendo que iria me engravidar. Segundo, o sujeito nunca me dirigiu a palavra. Não fez uma visita na gravidez inteira. E pra arrematar, me largou sozinha pra te criar. Se não fosse o José, sei lá o que tinha acontecido.
– E você acha que pra mim é mais fácil? Já parou pra pensar na responsa que é morrer pra salvar a Humanidade? Aliás, não sei nem do que é que eu tenho que salvar esse povo…
– Pergunta pro teu pai, ué.
– Fiz isso algumas vezes nos últimos dias.
– Eu sabia! Você foi encontrar deus no deserto, né? Onde é que esse tratante se enfiou? Eu vou falar umas verdades pra ele e vai ser hoje.
– Mãe, eu converso com ele dentro da minha cabeça.
– Oi?
– Eu ouço ele falando comigo.
– Quando?
– O tempo todo. Ontem à noite, por exemplo, ele falou: “Um dia, vamos nos encontrar. E eu gostaria muito de chamá-lo de meu filho.”
– Ixi… Tá delirando.
– Juro por deus.
– Não sei, não. Na dúvida, melhor marcar um médico.
– Ah, para.
– Vai que é esquizofrenia? Tem muita gente dependendo de você pra gente arriscar. Eu devo ter olanzapina em algum lugar. Toma uma pra ficar mais tranquilo e depois a gente marca uma consulta.
– Não vou tomar nada.
– Não tô pedindo, tô mandando.
– Tá vendo? É por isso que eu saio de casa. Você não me respeita. Ninguém me respeita. É só cagação de regra para cima de mim!
– Olha o palavreado.
– Todo dia é a mesma coisa. “Jesus, não faz isso. Jesus, não faz aquilo. Olha as companhias. Respeita os seus pais – os dois.” Eu não posso fazer nada que já vem cobrança!
– Você dá motivo.
– Mãe, eu sou livre de pecado.
– Ô.
– Como assim?
– Acha que eu não percebi que você e o João Batista não queriam sair de dentro do Jordão no seu batizado?
– Qual o problema? Tava calor.
– Confessa, Jesus.
– Confessar o quê?
– Que você transformou a água do rio em Chardonnay.
– Nada a ver.
– Olha no meu olho e fala que eu tô mentindo.
– Era Sauvignon Blanc.
– Pôxa, Jesus. Você não sabe o trabalho que deu pra tirar aquele azedume da sua túnica depois. E nem no rio eu podia lavar a roupa. Levou mais de uma semana até a água voltar a ser água. A cidade inteira comentou.
– Quer saber? Cansei dessa pressão. Tô saindo de novo.
– Coisa nenhuma.
– Quem vai me impedir? Você? Te solto um raio laser na cara se eu quiser.
– Respeita sua mãe.
– Então, me deixa em paz. Que saco.
– Pelo menos avisa onde vai.
– No Judas.
– Qual dos dois?
– Tchau, mãe.
– Vai lá, então. Anda com essas amizades pra ver onde isso vai dar. Moleque ingrato.
Imagem: Pixabay
Comentários
Sua releitura bíblica é sempre fantástica. Aguardo a continuação.