O ÚLTIMO PARENTE VIVO - 2ª parte >> Zoraya Cesar
Cansada da viagem, preocupada com Kot, May dormiu profundamente. Até a madrugada, quando...
Um som, como o de gato sendo torturado, penetrou nos
sentidos adormecidos de May e a despertou com tremores no corpo e coração
acelerado.
Haveria gatos selvagens naquela região? Teria algum entrado
no quarto?
O miado reverberava nas paredes, como se o bicho estivesse
lá dentro.
A escuridão da noite e o ar abafado da chuva adentravam o quarto.
May tateou à procura do interruptor de luz. Sua mão encostou em algo que
pareciam dedos e ela gritou, encolhendo-se na cama, agarrada aos lençóis.
Nesse momento, subitamente, as nuvens se afastaram um pouco,
e uma pálida luz lunar iluminou parte do quarto.
Um vulto debruçava-se sobre o copo de água que deixara na
mesa e desvaneceu-se em partículas, misturando-se aos raios lunares.
As nuvens voltaram a tapar a lua, a chuva amainou, o silêncio era total.
May fechou os olhos, descrendo do que acontecera. Nunca
passara por experiências sobrenaturais nem nelas acreditava. Sentia-se cansada.
As gotas tamborilando levemente na janela e a escuridão acabaram por fazê-la adormecer;
um sono nada reparador, no
entanto, cheio de visões de parentes mumificados, vultos ameaçadores e
sangue.
Amanheceu um dia frio, o céu num triste tom azul lavado e
pálido.
May olhou para o criado-mudo. Havia água derramada em volta
do copo virado e quebrado. A foto de Kot estava amassada e rasgada na ponta. Será
que, durante o estranho sonho fizera, involuntariamente, aquilo tudo?
Mas se não fora sonho, então, o que poderia ter sido?
Desceu para o café. Tia Vance estava vestida como uma
quacker, coberta da cabeça aos pés. Usava uma maquiagem pesada, que mal
escondia alguns arranhões no rosto. Recebeu-a com um sorriso discretamente contrafeito,
que passou despercebido por May, ansiosa por contar o que acontecera.
O semblante de Tia Vance foi escurecendo como o cair da
noite.
- Ah, então é isso. Você tem um gato? A foto é dele?
Sim, respondeu May, estranhando um pouco a fala da tia. Eu o
amo, crio desde pequenininho, peguei na rua, abandonado, mas agora ele está
velhinho e doente. Deixei-o numa clínica, mas não tenho muita esperança. E
começou a chorar. Os olhos de Tia Vance brilharam.
- Não se preocupe, querida, ele vai ficar bem. Quanto a ontem à
noite, você estava cansada, comeu depressa, dormiu em um quarto diferente, tudo
isso contribui para sonambulismo. Você mesma deve ter quebrado o copo e
amassado a foto. Vamos passear um pouco, que tal? Você precisa conhecer a
propriedade.
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A propriedade estava em franca decadência. Estábulos
apodrecidos, arbustos mortos, chão lamacento. Havia também uma construção pequena,
cuja entrada lembrava a de um mausoléu abandonado e lúgubre. A tia avisou para
não entrar, o casebre estava meio condenado, servia apenas para guardar
material de jardinagem e outros utensílios pouco usados. May pensou que, rica
como era, Tia Vance bem podia contratar profissionais que dessem um jeito naquilo
tudo.
Sentia-se exausta, como no primeiro dia. Arrependia-se de
ter vindo, devia ter pego um empréstimo no banco, em vez de economizar na casa
da tia. Externou, delicadamente, o desejo de partir, mas Tia Vance chorou, implorou
que ela ficasse ao menos mais uma noite. Afinal, May era sua última parente
viva, e ela já estava velha. May concordou.
Depois do passeio, May foi para seu quarto rezar pelo seu
gato, que Kot se recuperasse ou morresse em paz, mas que esperasse por ela.
Acabou dormitando. E sonhou. Sonhou com um homem velho,
velho, apontando veementemente para o casebre de utensílios. Em seu colo, um
gato bem parecido com Kot, alerta, mas confortável, balançando a cauda. O homem
apontou para o relógio de pulso, que marcava onze horas e sumiu. May acordou,
meio atordoada, com dor de cabeça pelo sono extemporâneo, mas convicta que
deveria ir ao casebre nesse horário. Inexplicavelmente, sentiu que não deveria
contar o sonho para Tia Vance.
Passou o dia lendo e caminhando na charneca. Não se aproximou
do casebre. Tinha a impressão de que Tia Vance a vigiava por entre as persianas
das janelas.
May sentiu-se mais sonolenta que o normal após o jantar. O que
era bastante estranho, pois descansara o dia todo. Reconheceu, subitamente, que estava cada
dia mais enfraquecida e cansada. Sua vontade era deitar e dormir o dia inteiro.
Mal deitou e o sono tomou conta de sua consciência.
E novamente acordou com miados zangados, sussurros ríspidos
e vultos, que reconheceu como sendo da tia e o do senhor que vira à tarde. May
gritou. Vultos, vozes e miados desapareceram. E ela se viu sentada, suando e
entontecida. Sonho ou realidade?
O criado-mudo estava torto e a foto de Kot um pouco mais amassada,
faltava-lhe um olho. May ficou nervosa, o que acontecia naquela casa? Sentia-se
fraca.
Mas ela tinha um compromisso às 23 horas e não estava
disposta a faltar. Pressentia que ali mistérios seriam revelados. Pelas
histórias de família, Tia Vance deveria ser mais que centenária. Como mantinha sozinha
aquela propriedade? Por que o caseiro jamais era visto? E porque só convidava
um parente de cada vez, de tempos em tempos? Aquela história de que todos
morriam ali ou logo depois, era lenda? Por fim, o que significavam aqueles
sonhos? Quem era aquele homem?
23 horas. Vestiu um casaco por cima do pijama, pegou um
castiçal com uma vela para poder enxergar no escuro e desceu silenciosamente as
escadas, abriu a porta e caminhou na lama fina que recobria o caminho.
A porta do casebre estava destrancada. May entrou e congelou.
Congelou por conta do vento frio que lhe batia às costas, e por conta do que
viu, sob a luz bruxuleante da vela.
Vários corpos exangues e pardacentos ocupavam prateleiras
presas às paredes. Fotos dos parentes que tinham estado na propriedade e
morrido em seguida - May reconheceu um ou dois. Mas o que a aterrorizou foi ver
uma foto sua, sobre uma toalha preta, junto a uma cruz invertida, garras de um
animal e cinzas. Um zumbido longínquo ressoava no aposento e ela teve vontade
de sair correndo, mas suas pernas não obedeciam.
- Achou o que esperava, querida? – A voz de Tia Vance soou da
porta.
May se virou, o castiçal tremendo em suas mãos.
Ao lado da tia, o senhor que vira no sonho. Ele era circunspecto,
tinha o ar triste dos desalentados e a mesma aparência dos corpos do casebre. Mas
parecia incomensuravelmente forte.
- Durante esses dois dias fui colocando você sob o efeito do sono eterno. Tudo o que esse estrupício devia fazer era terminar o serviço na água que você bebia à noite. Se o idiota tivesse conseguido, você já estaria na prateleira e eu bem
mais jovem, alimentada por sua energia e seu sangue. Viverei mais centenas de
anos graças a você. Ele sabe que só eu posso mantê-lo nesse mundo, por isso me
obedece. Vá, imbecil, ela tem de tomar o resto da água amaldiçoada.
O senhor caminhou para May com olhos remosos e cheios de
culpa. Antevendo a morte, ela só pensava em Kot, quem cuidaria dele? Que
destino horrível, chorava, servir de repasto para aquele ser incompreensível
que matava parentes para se alimentar e viver eternamente.
E então...
O caseiro voltou-se rapidamente e jogou a foto do gato em
cima de Tia Vance, que imediatamente se viu atacada por garras e dentes invisíveis,
sob o som de miados e rosnados furiosos. O homem pegou o candelabro das mãos de
May e ateou fogo na toalha, nas prateleiras, na madeira apodrecida. Empurrou a
moça para fora ao mesmo tempo que impedia a saída da velha bruxa.
- Vá. Não olhe para trás. Seu gato te salvou desde o início.
Ele e eu começaremos uma longa jornada, que devíamos ter começado há tempos, se
eu não fosse covarde e se você não o amasse tanto. E essa criatura vil nunca
mais fará mal a ninguém. Vá! – gritou.
O crepitar do fogo, os miados, os gritos perseguiram May até
o portão. Ela estava aturdida. Sair como? Sem dinheiro, sem...
O mesmo táxi que a trouxera estava parado à frente do
portão, a bagagem na escada. O fogo tinha chegado à casa principal. May pulou
para dentro do carro, ofegante, sangue saindo pelo nariz, de nervoso.
O interior do carro continuava escuro, agora com cheiro de pinho queimado. Como da primeira vez, nenhuma palavra foi trocada. Perguntas eram desnecessárias e ela intuiu que não seriam respondidas. May temia despertar de repente e descobrir que ainda estava naquela casa infernal.
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Mas não.
Ao chegarem à ferroviária, o indistinguível motorista jogou
um envelope no colo de May, que o pegou e saltou rapidamente. Assim que ela desceu,
o carro partiu e sumiu antes mesmo de entrar na escuridão.
Chovia, como no dia em que chegara, mas a estação estava
movimentada e iluminada, a lanchonete aberta. Ela abriu o envelope. Dinheiro!
As notas estavam velhas e sujas, mas ainda válidas. Dinheiro! Agradeceu
mentalmente ao velho caseiro que tivera a coragem de cortar os laços rotos que
o prendiam a um mundo ao qual não mais pertencia. Graças a ele, May escapara de
um destino horrível. Graças a ele e a Kot. Chorou. Tinha certeza que Kot morrera.
May não entendia de bruxarias, mas ouvira dizer que gatos são guardiões dos portais da vida e da morte.
E sabia que, de alguma maneira, o gato misterioso era Kot.
E eis que um miado baixinho e angustiado chama sua atenção. Viu,
ao lado de uma lata de lixo, um gatinho, magrinho e molhado, tremendo de frio.
Pegou o bichano, agasalhou-o e entrou para comprar leite. O filhote lambeu sua
mão, num gesto bem parecido com o que Kot fazia.
May sorriu. Tudo ia dar certo. Tinha algum dinheiro agora, e
resgatara um gatinho. Kot morrera para salvá-la, mas continuava vivo.
Comentários
Não deveria ter lido o texto da Zoraya antes de dormir (dormir???).
Vai ser foda pegar no sono hoje (hoje???).
Mais alguns textos desses, e eu acho que vou passar a dar perda total na cueca, de tanto medo.
Só não entendi quem era o motorista do taxi!
🙂
Mary