TRIBUNAL DE HAJA << SORAYA JORDÃO
Às 6h30 da manhã, o despertador berra o compromisso de uma vida saudável. Um misto de sono, preguiça, revolta e resistência me envolvem junto com a maciez do edredom e do geladinho do ar-condicionado. Uma breve reflexão agita a mente: vou ou não vou à hidroginástica?
A resposta surge embalada numa certeza que, a princípio, não permite debate nem questionamento. Se manifesta de forma tão óbvia e absoluta que chego a acreditar que a conclusão nasceu antes da dúvida. Não irei! Abraço o travesseiro e jogo o mundo para escanteio. Dane-se o colesterol, as coronárias, o manequim 44, o plano de ser uma pessoa melhor, mais obstinada e longeva.
Largo a mão de todos os bons adjetivos e flutuo na leveza da imperfeição. Desfruto, por segundos, da delícia de ser uma criatura sem objetivos, planos ou brio. Enfim, um ninguém sem propósitos, expressão máxima da liberdade.
Infelizmente, o nirvana dura pouco, porque sempre tem aquela conhecida voz implicante a nos lembrar que a vida exige medalhas de superação. Ela, a cruel promotora, inquilina de todas as mentes procrastinadoras, acorda e começa o massacre no tribunal de Haja (paciência).
O discurso é repetitivo, irritante, previsível, humilhante, provocador, mas muito coerente. Sim, o correto a ser feito, na lógica do mundo admirável, é levantar e seguir em frente. Pagar seu quinhão, vencer os obstáculos e orgulhar-se de si. Todos sabemos que cumprir obrigações é um imperativo que não aceita interrogação. Caso contrário, desanda o processo.
Mas persisto na questão: ir ou não ir?
No porão das intenções, vive a consciência do certo a se fazer, o projeto de uma guinada existencial, a esperança de uma evolução pessoal que me condecore de determinação e coragem para lutar. Mas, no andar de cima, pesando toneladas e esmagando o porão, vive esse ser impiedoso, narcisista, mimado, preguiçoso, indisposto, sem palavra, consideração ou vocação para compromisso.
Quase imbatível.
Desligo o despertador e viro para o lado. Tento sorrir aliviada, mas já não é o mesmo sono, a mesma paz, o mesmo gozo.
Muito embora esse eu seja mais forte, mais pesado, insistente e manipulador, e até se mostre mais próximo dos meus interesses, ele não é tão legal quanto parece. Prova disso é o gosto de fracasso que ele deixa na minha boca ao despertar e aquela maldita sensação de que amanhã terei uma nova chance, já que a de hoje desperdicei.
Onde mora a vontade que vence?
Alguém me salve de mim.
Comentários
Com o calor que anda fazendo está fácil sair da cama. Mas, não quero nem pensar quando o frio chegar, se chegar.
Beijos
Nina
Parabéns, Soraya!