PINGADO COM LEITE FRIO >> JANDER MINESSO
Você era mais novo do que eu. De abril ou agosto, não lembro bem. Aliás, já esqueci vários detalhes dos pedaços de vida que a gente dividiu. Hoje, as lembranças parecem aquelas fitas VHS da nossa época, cheias de chiado e com cenas mastigadas.
Ainda assim, eu guardei algumas memórias. Por exemplo: tem uma cena meio borrada de nós dois na Galeria Pajé, comprando muamba. A gente tinha uns dez, onze anos e eu queria uma fita cassete do Ace of Base. Naquela época, de Ace of Base a Ziggy Marley, ouvíamos de tudo. E só no mundo mágico das compras encontrávamos fitas cassete de bandas pop suecas a um preço acessível. Décadas depois, percebi que seus pais compravam coisas lá para depois revendê-las pelo dobro do preço na loja que eles tinham. Engraçado lembrar que já existiu um mundo pré-Shopee.
Falando na loja dos seus pais, também tenho uma lembrança lá. Nós estávamos jogando Mega Drive nos fundos. Não lembro o jogo e muito menos quem ganhou, mas deve ter sido você. Depois da partida, sua mãe deu uma grana para a gente comer alguma coisa na padaria ao lado. Sentamos no balcão e escolhemos o clássico pão na chapa com pingado. Pedi o meu com leite quente. E até hoje, sou capaz de jurar que o balconista ferveu aquele leite no Vesúvio, mas é claro que eu só percebi quando o primeiro gole cauterizou minha garganta. Depois de rir até engasgar, você me deu a dica de pedir o pingado com leite frio. Cuzão.
Outra lembrança boa que eu guardo aconteceu no quintal da minha casa. Estávamos largados no chão, pingando depois de mais uma partida de futebol que comprovou nossa imperícia no esporte bretão. Enquanto esperávamos o domingo passar, emendamos um papo besta sobre as meninas da classe. Conversa vai, conversa vem, você acabou entregando que sua prima – a criatura mais linda da escola – gostava de mim. Foi um dos dias mais felizes dos primeiros doze anos da minha vida. Olhando para trás, talvez você tenha mentido. Mas uma mentira dessas merece prêmio e não repreensão. Além do mais, você não está aqui para contestar, então posso acreditar no que eu quiser e escolho acreditar que era verdade.
Essa é uma das melhores, mas nem de longe a última memória que eu guardei. Lembra na quinta série, quando sua cadeira cedeu e você caiu no chão da classe? Antes que você voltasse do recreio, eu e os outros moleques quebramos um pezinho dela por pura sacanagem. Fica de revanche pelo pingado.
Também lembro de você tocando baixo na mesma banda que eu tocava. Se não me falha a memória, você entrou logo que eu saí. Depois, você saiu e eu voltei. E no meu retorno, fui ridículo a ponto de querer provar para todo mundo que eu tocava melhor do que você. Que grande babaca, né? Mas sendo sincero, as melhores fotos da banda são aquelas em que você aparece. E se eu te conheço, você não ligava para essa competição entre nós dois. Aliás, nem cogitou que existisse alguma disputa.
São essas as imagens que gravei no VHS da nossa história. É pouca coisa, mas dá para ter uma certeza: você foi uma das pessoas mais puras que eu já conheci. Inocente a ponto de ter a coragem de ser verdadeiro consigo. E é por essa coragem que a sua morte parece ainda mais injusta. Você não merecia ser mais um número. Só que a vida pouco se importa com o nosso conceito de justiça. Então, vai em paz e obrigado pelas memórias.
Só mais uma coisa: se foi você que derrubou o travesseiro da minha cama enquanto eu escrevia, saiba que fantasma é um troço que me assusta pra caralho. Foi por isso que vim terminar o texto na sala. Mas se o seu medo é ser esquecido, uma certeza eu te dou: toda vez que tomo um pingado na padaria, eu peço com leite frio.
Imagem: Pixabay
Comentários
De longe e na base do chute, algo me diz que era de agosto…
E, se estou certo, ele não quis te assustar a noite… Era só um ensinamento empírico sobre esse tipo de contato, afinal ele foi empírico também no lance do pingado.