O homem, a mulher e o cervo >> Alfonsina Salomão



O homem atropela um cervo. 
 
O animal agoniza. 
 
O homem, desesperado, busca um kit de primeiros socorros. 
 
A mulher se dá conta da inutilidade do gesto; o homem está apenas prolongando o sofrimento do animal. 
 
A mulher busca nas suas entranhas a força de dar um golpe de misericórdia no cervo. 
 
O homem sente ódio dela. 
 
Vendo o kit de primeiros socorros nas suas mãos, a mulher tenta explicar que não havia como salvá-lo. Mais uma vez, ela extrai forças das profundezas de si mesma para entender o homem, ir além do seu ressentimento. Ela também amava o cervo, mais até do quê ele. Durante anos, fizera de tudo para mantê-lo vivo e evitar que fosse atropelado. 
 
A mulher sente a presença dos filhotes do cervo observando, paralisados, com olhos esbugalhados e orelhas empinadas. 
 
 O homem não quer saber nada do sofrimento da mulher. Eu não queria que o animal morresse, é sua culpa - grita. Ele parece esquecer o atropelamento e enxerga apenas o golpe de misericórdia. 
 
A mulher se deixa insultar, mais uma vez, num excesso de compaixão que beira o masoquismo. Até quando?

Comentários

Soraya Jordão disse…
Até quando? até quando?
Ana Raja disse…
É sempre mais uma vez!
Jander Minesso disse…
Tem horas que dá vergonha de ser homem. E não são poucas.
Zoraya Cesar disse…
Mullheres tb agem assim. É típico do ser humano tentar culpar o outro pelo inevitável, ou por suas próprias faltas. Exige muita autoconsciência e força de caráter para nao agir assim.
No entanto, no entanto... quem dá o golpe de misericórdia sempre sofre mais. Principalmente qd náo é reconhecido. E qd falamos de casais, a pergunta é essa mesma: até quando?

Textaço, Alfonsina, textaço!
Albir disse…
Concordo, Zoraya, é típico do ser humano tentar culpar o outro. Mas quem tem mais poder sempre tem a última palavra sobre a culpa.
Beleza de texto!

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