O PASSEIO DE NATAL DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO >> Zoraya Cesar
Andava devagar, apreciando as
pequenas coisas – um mato crescendo entre as pedras da calçada, um aroma de
bolo vindo da loja, o vento e as folhas das árvores dançando juntos,
suavemente.
Se dissermos que era idoso, não estaríamos
longe da verdade – mas ninguém conseguiria precisar seus anos vividos na Terra.
Quem conversasse com ele sentia-se inapelavelmente atraído a mergulhar em seus profundos
olhos castanhos transbordantes de bondade. E, ao voltar à tona, era como se todos os
problemas tivessem desaparecido.
Definitivamente, um senhor estranho. Ainda mais porque levava no colo um gato preto de grandes olhos amarelos sinistros e ameaçadores, que bufava, a toda hora, como que contrariado. Que ideia, a do Velho Padre, sair para ver ‘as coisas’ e distribuir presentes na véspera de Natal, um período em que, em vez de se aquietarem e penetrarem no verdadeiro espírito, as pessoas ensandeciam à procura de presentes, criavam (ou pioravam) conflitos familiares, ficavam deprimidas.
1º ato
A mulher arrastava o garotinho pela
mão sem nem olhar para ele. A tarde já ia alta e tudo o que a criança queria
era ir pra casa, comer e dormir. Mas a mulher não. Estava obcecada em encontrar um
bendito trem para o filho – talvez para compensar o peso dos problemas pelos quais
passava; conseguir um presente seria um tapa na cara do destino, uma pequena
vitória no meio de tantas derrotas. O menino, a bem da verdade, queria algo bem
diferente, que ele não saberia expressar, mas tinha claro em sua alma.
A última loja de brinquedos estava
fechada. A mulher pensou que sufocaria de tristeza. Todo o sacrifício fora em vão.
Tão concentrada em comprar presente, que nem prestara atenção às necessidades
do filho. Antes de se perder num mar de culpa, um ronronar alto e um riso chamaram
sua atenção. A criança brincava com um gato preto comodamente instalado no colo
de um senhor de batina. O coração da mulher se encheu de ternura. O riso dele
era tão gostoso!
Homem, gato, criança e mulher
entraram numa lanchonete próxima. Os frequentadores garrulavam, contentes,
brindando ao Natal. O espírito da mulher elevou-se mais um pouco. Ao fim da conversa
com o padre, tudo já estava em uma nova perspectiva e ela sentia-se feliz. O
homem pediu um pequeno bolo e uma velinha de aniversário. Cantou parabéns pra
você, entremeou com uma cantiga alegre de Natal. Riram, comeram e, ao final, o
menino abraçou a mulher “Melhor Natal do mundo, mãe!”.
Saíram os quatro ao entardecer
prateado, cada qual carregando seu presente no coração. Menino e mãe conectados
no amor, melhor que qualquer presente material; o padre por ter feito o que mais
amava, ajudar o próximo, e o gato resmungando que o velho amigo acertara de
novo.
2º ato
O Velho Padre nem ia parar ali, mas
algo chamou sua atenção. O mesmo ‘algo’ eriçou os pelos do gato. O bar nem
estava cheio, os últimos fregueses saíam, apressados, temerosos de pegar muito
trânsito e chegarem atrasados em casa, logo na véspera de Natal. Mas havia um
homem que parecia não ter pressa, bebendo um destilado de raiva e solidão no
balcão. No entanto, sozinho, propriamente, não estava. Um espírito trevoso o
acompanhava, instigando-o a beber e a sentir mais raiva da família.
O garçom serviu um copo de água
para o padre, e pareceu aliviado com sua chegada. Começaram a conversar, perto
o suficiente para o homem ouvir. Conversaram sobre perdão, amor fraternal,
laços familiares, de como o orgulho destrói tantas vidas como um vício, de como
a vida passa rápido, de como a morte mostra o quanto perdemos tempo na vida, de
como só o amor salva... E foi uma conversa leve e feliz, com causos e risos e
lembranças antigas. O homem ouvia com a alma, sem se dar conta da transformação
pela qual passava. Ligou para o irmão, pediu e recebeu desculpas. Foi para a
festa em família, feliz como um menino que ganha o melhor presente do mundo.
O espírito esperava do lado de fora,
furioso com a intromissão. Decidira que naquela noite cometeria sua primeira morte
e seria a daquele velho esquisito e intrometido. Preparou-se.
Preparou-se mal, no entanto. Não se
deu conta que, se aquele velho cortara seu encantamento maldito, era porque tinha
poderes. E uma proteção especial. Um gato preto estava a encará-lo, os olhos de
âmbar dourado reluzentes e sinistros. O demônio hesitou. Esses bichos eram
associados a bruxarias e práticas demoníacas. Embora soubesse que não era
verdade, ainda era um demônio novo, desacostumado às práticas terrenas. Sua dúvida
desvaneceu-se quando o gato eriçou os pelos e cresceu, agora menos um gato e mais
uma pantera, grande e ameaçadora, as presas enormes na boca escancarada. Seu
rosnar parecia saído do mesmo inferno de onde o demônio viera. Mas o que
diabos... Sentiu um puxão forte para baixo. Outro. E outro. Até partir-se em
pedaços rumo à escuridão.
Em seu lugar, surgiu uma mulher de
pele roxa e vermelha.
- Peço desculpas. Esse demônio jovem
e imbecil pagará o preço por desobedecer à proibição de mexer com o Velho Padre.
– Uma longa e viscosa língua saiu de sua boca sem dentes e ela disse:
- Vejo que continua em forma, Gato
Preto. – E desvaneceu-se no ar, deixando um leve odor de graxa queimada.
3º ato
Aquela mania de o Velho Padre andar
a esmo, sem lenço, sem documento, sempre preocupara o Gato Preto. Por mais
longevo e extraordinário que o amigo fosse, existiam perigos – como o que
acabaram de passar -, e o Velho Padre era... bem, era velho! Seus tempos de luta
haviam terminado há mais tempo que o gato poderia lembrar em suas sete vidas.
Naquele dia, o Velho Padre ajudou muitas pessoas pelo caminho, alegrou espíritos entristecidos, deu atenção aos solitários, alento aos desesperançados. A todos dava um pouco de sua bondade, luz, sabedoria.
Maldição, resmungou o gato. Estavam perdidos naquele
emaranhado de ruas desertas. Mas sentou-se, paciente, esperando. Estava
acostumado, sabia que o Velho Padre sempre encontrava uma saída.
No momento, seu amigo estava
entretido ajeitando um buquê de rosas cercado de velas na encruzilhada; ajeitou
uma das flores, acendeu uma das velas que se apagara com o vento, admirou o
desenho formado pelo arranjo. O Gato Preto observava, a cauda fazendo desenhos
sinuosos no ar. Já pressentira que a solução estava a caminho.
Ela caminhava resolutamente, uma
mulher ainda jovem e linda de longos cabelos pretos e um vestido vermelho de
festa, com as laterais abertas na altura da coxa. Em uma de suas pernas
podia-se ver uma navalha presa por uma liga de meia-calça. Era linda, mas
somente em um dos hemisférios de seu rosto; o outro era uma caveira. A pomba gira
Rosa Caveira chegara para ajudar.
Sorriu para o Padre, beijou-lhe a
mão.
- Tão bom ver o senhor aqui! Já
pedi um táxi, em breve vocês estarão em casa. Aqui não é seguro e já está
tarde!
Os dois ficaram conversando, Não
demorou muito, e um carro parou junto a eles. Na placa de identificação do
motorista lia-se “Cristóvão, Santo Padroeiro dos Motoristas”.
O Velho Padre abriu a porta para a mulher
entrar.
- Não tem sentido você ficar aqui. É
minha convidada. Maria Madalena e Nossa Senhora vão ficar muito felizes e Marta
certamente irá querer que você prove uma nova sobremesa.
A mulher mal cabia em si de
contentamento. Participar de uma das festas de Natal do Velho Padre era seu
sonho desde que desencarnara.
Do lado de fora, a igreja estava às
escuras e, se alguém passasse por lá, pensaria estar totalmente deserta, tal
seu silêncio. No salão dos fundos, no entanto, conversas, risadas e amor enchiam
o ar de cores e sons suaves e alegres.
Nossa Senhora abriu os braços para
acolher a recèm-chegada, que, ajoelhando-se, extasiada, ofereceu-lhe uma rosa.
Santa Marta trouxe um prato de arroz doce e sentaram-se as três a conversar e a
brincar com o Menino, que nenhum medo sentia da estranha mulher, sabendo, como
sabia desde sempre, reconhecer a face da bondade, da morte e da natureza
humana.
Santos, anjos, entidades festejavam
em puro estado de alegria e amor a vinda do Salvador. Antônio e Frei Galvão
contavam as graças que concederam ao longo do ano, e implicavam com Cristóvão,
dizendo que, do jeito que as pessoas dirigiam naqueles dias, ele era o santo
mais ocupado de todos. O Velho Padre contava as aventuras do dia para São
Rafael e Santa Teresinha, aproveitava para pedir bençãos para todos os que
ajudara e repetia, feliz, que, realmente, festas de aniversário eram as suas
preferidas.
Aninhado ao Menino, o Gato Preto bocejou,
preparando-se para sonecar um pouco. Estava contente com o passeio que fizeram.
Passar a perna no Mal era uma especialidade do Velho Padre que ele muito
apreciava.
“Quando ele se for dessa vida, vou
junto. De novo. Talvez, dessa vez, eu confesse que festas de aniversário também são as minhas
preferidas”.
Comentários
E alguns outros pontos me chamaram a atenção, no mesmo ato.
Um foi a pressa dos bebuns em chegar em casa. Sei não, mas esse bar está muito mal frequentado, em termos de boemia.
O segundo foi o fato de esse mesmo bar contar com um garçom versado em temas espirituais. Talvez esse seja o diferencial que atrai clientes que têm pressa em chegar em casa.
E o terceiro foi a falta de senso de oportunidade do demônio. Se aquela seria a primeira morte perpetrada por aquela entidade, deve ser o primeiro caso de alguém que começa uma carreira em véspera de Natal (excluindo da contagem, claro, a população da Lapônia).
No mais, o texto é uma renovação do prazer anual de ler uma aventura do Velho Padre às vésperas do Natal.
Como sempre, história do Velho Padre é pra deixar os corações mais leves e esperançosos, apesar dos toques sutilmente sinistros que são peculiares à escritora.
Obrigada, queridíssima, por mais esse presente de Natal.
Seu lado mais meigo, querida Lady!
Feliz Natal 💓!