INESGOTÁVEL >> Carla Dias


Distraiu-se com os próprios pensamentos e a deixou destrancada. Não somente destrancada; escancarada.

O carteiro, depois de tocar a campainha, chamar o nome do destinatário várias vezes e soltar um “tem alguém aí” de incomodar vizinhos, deu-se conta de que a casa estava vazia. Entrou para conferir se a pessoa havia passado mal, ou, pior, encontrava-se estendida no chão da cozinha, sem vida. 

Soube do ocorrido pelo próprio carteiro, que fez um relatório detalhado e, antes de sair, encostou a porta. Nem deu muita atenção ao P.S. da missiva deixada por ele, em cima do pacote: “Fiquei preocupado, por favor, avise se chegou bem em casa”. Logo abaixo, anotou seu telefone.

Há tempos seu corpo teimava em não desfrutar de energia. Tomou remédios, mudou a alimentação e, depois de quase um ano de terapia convencional, rendeu-se às alternativas...

Nada.

Abriu o pacote com o mesmo desinteresse que devotou às palavras do carteiro.

Arrastava-se pelos cômodos roçando o corpo em cada móvel que fazia parte de sua rota, a fim de sentir amparo para dar o passo seguinte. Demorava tanto a se servir, que a comida chegava morna no prato. O banho era responsável por uma conta de água digna de uma casa com cinco moradores.

A amiga da avó, uma senhora muito elegante que fazia limpeza nas casas da região, aparecia uma vez por semana para catar copos, roupas, papeis e o que fosse deixado pelo caminho. Havia dias em que precisava chamar uma amiga para ajudá-la. “Dá nem pra imaginar o que desacontece aqui, menina!”.  

Era sempre assim: de volta do trabalho, ao abrir a porta de casa, a energia sumia e se iniciava uma demorada labuta até finalmente se deitar em sua cama. O frágil vigor que ainda morava em seu corpo atendia somente às horas dedicadas a conseguir o sustento.

Organizava mentalmente a lista de afazeres do dia, começando com um chamado para evitar esquecimento na hora de encostar e trancar a porta. Repetia que seriam apenas algumas horas de necessário esforço, que logo estaria de volta.

Demorou-se um pouco mais que de costume para calçar os sapatos, dedicando-se primeiro a ajustar as meias nos pés. Ainda bem que o carteiro entrou e deixou o pacote. Aquelas meias, confortáveis e coloridas, que pareciam fazer as pessoas dançarem naquele comercial de televisão, ofereceram um rastro de prazer para quem raramente o sente. 

Quase sorriu, mas o sorriso desmaiou no quase curvar dos seus lábios.

Imagem: Stańczyk, obra de Jan Matejko

carladias.com.br

Comentários

Zoraya Cesar disse…
e lá vou eu cair na armadilha que já havia me prometido nao cair: ler Carla Dias num domingo à noite. Tô abalada aqui.
Carla Dias disse…
Obrigada pela leitura, Zoraya e Branco! E pelo mergulho na história, pelos comentários gentis. Beijos!
Uau, está tão bem escrito que até entrei na depressão do seu personagem, coitado! Engraçado que no começo pensei que você falaria justamente do contrário, de uma pessoa cheia de vida que deixa a porta escancarada porque tem muitas ideias na cabeça. Eu às vezes esqueço a chave do lado de fora da porta, mas graças a Deus não pelos mesmos motivos que o homem da histórias.
Beatriz C. Azevedo disse…
Eu fiquei parada depois de ler. Eu senti em mim a energia esgotada,mas primeiro o que rolou foi que eu me ressenti por você ter materializado isto, desta forma, com esta fôrma (forma no sentido de container mesmo), com este mote (da porta, do carteiro), antes que eu o pudesse adivinhar e fazer. Minhas crónicas sobre o "feijão e o sonho" e sobre a depressão, aí resumidas. Amei sua condução.
Beatriz C. Azevedo disse…
E E ao adicionar meu comentário, acabei de encontrar mais do que o título para minhas próprias crônicas escritas esperando um fio que as alinhave.
Carla Dias disse…
Alfonsina, esquecer significa ter o que lembrar. Nesse caso, é um esvaziamento que entra em pausa somente na necessidade de sobreviver como é possível. Um esvaziamento. Obrigada pela leitura e pela gentileza do comentário.

Beatriz, obrigada por passar por aqui e ficar, ler o meu texto. Fiquei curiosa sobre suas crônicas. Gostaria de ler alguma.

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