NÃO CHORE >>> Nádia Coldebella




O sobrinho

Existem, nas famílias, aquelas palavras que querem pular boca a fora, mas são contidas por um muro de dentes. Esses mesmos dentes rangem doloridos, contorcendo a face ressentida ou simplesmente alicerçando um mar de lágrimas prestes a derramar.

Raiva. Tristeza. O sobrinho não sabia. Os dentes continham alguma coisa para além de palavras que ele, tão jovem, ainda não conhecia o nome.

Não chore, criança. Esse nome nunca chegará ao seu coração.


O pai

O inacreditável está na entrada da casa. O improvável, escrito em letras garrafais. O inexplicável, esculpido e pintado em cores vivas para todo mundo ver. O inescapável é concreto, mas mesmo assim escapa pelos dedos, como areia da praia que escorre ao carinho das ondas.

Um castelo desfeito, foi o que o pai sentiu. Derramou lágrimas sozinho e fechou os olhos. Rezou a Deus para que o implausível, agora manifesto, fosse apenas um delírio da sua cabeça idosa que começava a ficar senil.

Não chore, meu pai. Enquanto houver um grão de areia na praia, acariciarei seu rosto.


A mãe 

As vezes, se existe no meio do nada. Quando a realidade retira o chão de sob os pés, só o abismo insondável resta. Queda-livre.

A mãe viu assim. Ela tentou fazer de conta que pisava chão sólido quando sentiu que cada pedaço de amor profundo investido esperançosamente havia sido arrancado do seu peito. Agora estava enterrado num buraco. E ela não tinha ideia do que fazer com a dor que sobrara. Olhava nas malas, para ver se conseguia alguma coisa de volta.

Não chore, minha mãe. Eu te sustentarei enquanto pisares nesse mundo.


O irmão 

A realidade vem com filtro. Quando o filtro desaparece, o bizarro e o cruel dançam juntos. O filtro é um atenuante. Senão a dor não pode ser forçosamente suportada. A força vem de um lugar que ninguém sabe onde fica, mas ela é apenas uma fachada. Uma casca necessária, que impede o desmoronamento. Não dá pra desmoronar. Senão todo mundo cai. 

O irmão sentiu o desespero. Era muito o peso, mas ele suportou. Ele não sabia até quando, mas não deixaria os joelhos dobrarem. Ele repetia isso para si mesmo, como um mantra, amortecido pelo tremendo impacto da realidade que se descortinara no necrotério. E pelo dever que se descortinava a sua frente.

Não chore, meu irmão. Estou ao seu lado, te guiando.


O filho

Se o abandono pode extinguir o corpo, o desamparo extingue a alma. Quando tudo o que se ama vai embora, onde coloco todo o meu amor? Porque nessa hora se é  jogado no vácuo. Nessa hora, é dubitável a existência. 

O filho era pequeno. Ele não viu mais a mãe, depois do boa noite e do santo anjo. Não tinha mais nada lá. Nem mamãe, nem papai, nem ele. Ele sabia que ela tinha sido colocada sob a terra, mas será que ela realmente se fora? Sobraram algumas coisas e algumas palavras. Mas as palavras não faziam sentido para o menino, porque ele ainda era arrastado pelo tsunami que, naquela madrugada, chegou junto com o pai e levou embora a mãe.

Não chore, filhinho. Eu nunca deixarei que você fique só.


O amigo

Alguns observam consternados, enquanto o caixão desce. Outros, sedentos por sangue, invadem espaços sagrados e tratam a dor como carne no açougue. Mas a morte é a única certeza dos vivos.

O amigo olhava a família. Mesmo expostos a tamanha desumanidade, crueza e brutalidade, circularam com naturalidade entre os preparativos. Deixaram o caixão lacrado para poupar a todos do choque. Cuidavam uns dos outros, embora em frangalhos. O amigo não conseguiu conter o impacto daquela dor, que vinha como as ondas violentas e arrastava tudo o que estava em sua frente. 

Não chore, meu amigo. Seja amigo dos meus, por mim.


A resposta

Você nasceu com olhos brilhantes, luzeiros na escuridão desse mundo que não suportou sua luz! Ele foi bruto, cruel e estupido com você. Empunhou sua confiança como arma e tentou aniquilar toda a ternura do seu olhar.

Mas não chore, querida! Você é muito mais que o papel que escreveram para você!

Seu grito contido ecoará em nossas orações. Suas palavras caladas florescerão e lançarão sementes de esperança.  

Não chore, querida! Sua luz não se apagou. Nós lutaremos por você.  Nossa resistência será a gentileza, nossa arma a tolerância e nosso grito o amor. Sua luz ficou em nós.


Para J.J., pessoa excepcional, vítima de feminicídio. In memorian.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nádia. Nem sei o que dizer. Fiquei tão impactada q até me atordooei. Na falta de capacidade para expressar a multidão de sentimentos complexos e também contraditórios que seu texto despertou em mim, fico no arroz com feijáo: que escrita maravilhosa, minha amiga, que escrita maravilhosa!
whisner disse…
Comovente. Belo texto.
Nadia Coldebella disse…
Obrigada Zô e Whisner. Infelizmente, baseado em fatos reais bem perto de mim. Confesso que até agora não entendo e escrever ajudou um pouco a administrar.

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