POR LAURINDO BARRETO, PARA O TELA NEWS >> Ana Raja


Seria assim o seu depoimento?

O senhor me dá licença? Pode ficar no corredor? Eu não estou me sentindo muito bem. Por favor, um pouco de compaixão não lhe fará mal. Ai, que alívio! Todos os dias esse ônibus lotado. Um pouco de ar faz a gente se sentir viva. Estou com muitas olheiras. A minha madrugada foi um pesadelo. Sonhei que finalizava o meu marido. Acordei assustada, com ele me sufocando. Um desespero. O travesseiro no rosto me impedia de enxergar o teto do quarto. Esperneei feito galinha degolada. Com a mão livre, alcancei a mesa de cabeceira e agarrei a imagem de Santa Rita de Cássia. Bati com toda força na cabeça dele. Nem sei como caiu desmaiado ao meu lado. A santinha era pequena para tanto. A coitada se espatifou todinha. Aflita, busquei o ar e olhei para o homem que dormia comigo há vinte anos. O que veio depois foi uma sequência de imagens confusas. Minha cabeça até parecia um álbum de fotografia. E assim continuou, só que dessa vez, quem está com o travesseiro sou eu. Sufoco seus olhos para que ele nunca mais possa enxergar. Acesso forças que desconhecia em mim e o arrasto até o quintal. Com a enxada, cavo um buraco — não muito fundo, e nele desovo aquele corpo inútil. Uma oferenda para o inferno. Sabe que nesse momento a lucidez quase voltou? Com os dedos ágeis, jogo a terra vermelha na cova e levanto do chão com o nascer do sol enquanto eu renascia. Arranco a camisola suja de terra e sangue e a coloco de molho no alvejante. Quando voltar para casa no fim da tarde, o tecido estará alvo como as nuvens que dançam no céu. Nossa, as minhas mãos estão encardidas. Por um acaso tem aí um lenço para que eu possa me limpar? Obrigada!  Pode se levantar? A minha parada é a próxima.  

Me preparava para levantar; espreguiçando para o dia que se iniciava. Alcancei  meu Smartphone na cabeceira da cama e saí em busca de atualizações. Alguém vive sem elas hoje em dia?  Ainda na cama,  minha atenção se agarrou à chamada de uma notícia estarrecedora. Por que emudeceu? Calou o horror e o alívio? Por que nenhuma foto dela ilustra o artigo? 

 


Imagem: Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Zoraya Cesar disse…
muito legal, Ana, mais um que dá vontade de continuar lendo!
Nadia Coldebella disse…
Muito muito bom! Interessantíssimo e bem denso, aliás.
Essa é uma coisa que tenho me perguntado,sobre a capacidade de algumas pessoas fazerem coisas terríveis e seguir a rotina normalmente. Não sei como conseguem...

Um grande abraço!

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